Assassinato de médicos amplia crise de segurança no Rio de Janeiro; entenda

Disputa territorial entre grupos criminosos armados, como milicianos e traficantes, pode estar alcançando bairros com menores índices de criminalidade, diz especialista

Por Caio Possati
ESTADÃO

O assassinato dos três médicos em um quiosque na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, no começo da madrugada desta quinta-feira, 5, amplia a crise vivida pelo Estado em relação aos problemas de segurança pública no território fluminense. Ocorrências criminais recentes envolvendo grupos vinculados ao crime organizado, milícias e agentes de segurança do Estado dão o tom de crescimento da violência letal na região.

A principal linha de investigação da polícia sobre as mortes de Marcos de Andrade Corsato, de Diego Ralf Bomfim, e Perseu Ribeiro Almeida indica que um dos um dos médicos pode ter sido confundido com o miliciano Taillon de Alcântara Pereira Barbosa, filho de Dalmir Pereira Barbosa, apontado por autoridades policiais como um dos chefes de uma milícia que atua na zona oeste da cidade do Rio. Um quarto médico que estava com o grupo também foi atingido pelos disparos e sobreviveu. Ele segue internado com o quadro estável.

Médicos foram atingidos enquanto estavam em quiosque na Barra da Tijuca 
Foto: Polícia Civil-RJ

Para o sociólogo Daniel Hirata, professor e coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (UFF), a execução dos médicos, que estavam no Rio para participar de um congresso, “é um retrato bastante emblemático da situação do Rio de Janeiro.”

“O Rio de Janeiro tem uma característica relacionada à própria ecologia urbana da cidade que, áreas conflagradas pelos conflitos armados e disputas pelo controle territorial por grupos criminais, acabam também, muitas vezes, atingindo pessoas de outros lugares”, afirma o sociólogo.

Ao Estadão, Hirata explica que o Estado fluminense sofre, há anos, com uma disputa territorial armada protagonizada sobretudo por facções criminosas envolvidas com o tráfico de drogas e grupos de milicianos.

De acordo com o professor, não é comum acontecer um execução em uma região de classe média da cidade, como na Barra da Tijuca, mas as tensões andam tão elevadas que essa violência está transbordando para outros endereços onde o índice de criminalidade costuma ser menor.

Ele entende que o aumento da violência nos últimos meses está relacionada também a morte de um dos lideres de uma das maiores milícias do Rio. “Ao contrário do que as autoridades imaginam, quando acontece a morte de uma liderança, não se resolve exatamente o problema de disputas. Pelo contrário. Acaba que amplifica essas disputas, porque passa a ter um movimento de sucessão dessas lideranças, o que intensifica os conflitos armados”, diz.

A zona oeste do Rio de Janeiro, onde fica a Barra da Tijuca, é um território de disputa entre milicianos e traficantes, com frequentes tiroteios, toque de recolher, e moradores assustados. Segundo informações colhidas pela Polícia, em janeiro deste ano, o Comando Vermelho (CV), principal facção criminosa do Rio, tentava expulsar milicianos e passar a controlar o tráfico de drogas em bairros da região, onde a milícia surgiu, há décadas.

Em agosto, o vereador Marcelo Diniz (Solidariedade-RJ) foi alvo de um ataque de fogo na comunidade da Muzema, na Zona Oeste da Rio, onde mora. A área é dominada pela milícia e fica dentro de uma região que se tornou alvo de disputa entre milicianos e traficantes. “Todo mundo sabe que está tendo guerra aqui entre facções por disputa aqui do poder paralelo nessa região”, disse o vereador em vídeos publicados em uma rede social.

Maior parte da violência atinge as classes de baixa renda, diz especialistas

Daniel Hirata define a situação como “complexa” e de “difícil situação”. Até porque, diz ele, engrossa ainda o caldo dessa violência letal do Rio, a ação de membros do Jogo do Bicho, que também agem com truculência; grupos de matadores profissionais, que atuam na execução sumária de outras pessoas, como no caso de ex-vereadora Marielle Franco; e membros da força policial do Estado.

“Esse ano tem sido bastante violento no Rio de Janeiro por conta de disputas dos grupos armados e também, claro, de forças policiais que, via de regra, não protegem as pessoas desses conflitos e acabam reproduzindo mortes também”, afirma Hirata.

Um exemplo recente de que a violência também parte da polícia no Rio foi o caso da Heloisa dos Santos Silva, de 3 anos, que morreu em setembro depois ser atingida por uma bala, na coluna e na nuca, disparada por agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF). Ela estava no carro junto com a sua família, que foi abordada pela PRF na rodovia que liga Duque de Caxias a Itaguaí, na Baixada Fluminense. Ele foi socorrida, ficou internada por nove dias, mas não resistiu.

Segundo a ONG Rio de Paz, Heloísa foi 11ª criança vítima de bala perdida no Rio de Janeiro, quase o triplo de casos registrados no ano passado, quando foram contabilizadas quatro vítimas, segundo a organização. A ong acompanha os casos de crianças mortas por armas de fogo, em operações policiais, nas favelas do Rio desde 2007.

Heloísa dos Santos Silva morreu depois de ser atingida por um bala disparada 
por agentes da PRF, em setembro deste ano 
Foto: Instagram/@w.i.l.l.i.a.n_s.i.l.v.a_

Em agosto, Eloah Passos, de 5 anos, morreu depois de ser atingida por uma bala quando estava dentro de casa, na Ilha do Governador, zona norte do Rio, em caso que contou com a manifestação de indignação do presidente Lula. No mesmo dia e local, um jovem de 17 anos foi atingido durante uma abordagem policial e morreu depois de ser socorrido. A polícia disse que o garoto teria reagido à abordagem da PM e estava armado, o que foi contestado por testemunhas.

“Temos um conflito armado que vitima pessoas todos os dias no Rio de Janeiro. A questão principal é que essas vítimas normalmente residem em favelas, conjuntos habitacionais, em periferias urbanas e, em sua maioria, são negras e jovens, mas não ganha tanta repercussão como quando pessoas mais abastadas sofrem esse tipo de violência”, diz o Daniel Hirata.

Sobre o caso da Heloísa, a PRF informou na época que investigava o caso. Em relação ao episódio envolvendo Eloáh, a Polícia Militar disse que não realizava operações quando a garota foi atingida pelo projétil e afirmou, na época, que afastou o comandante do batalhão da região enquanto as investigações do caso estivessem em curso. A Polícia Civil afirmou na ocasião que que a Delegacia de Homicídios da Capital investigava as mortes da criança e do adolescente da Ilha do Governador.

Para o professor João Trajano, professor titular de Ciência Polícia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), a execução dos três médicos na Barra da Tijuca é um “ponto fora da curva”. “O caso chama a atenção por ser uma área relativamente nobre, de classe média, de baixa criminalidade. Então, o fato, em si, é extraordinário e chama a atenção e não é algo comum”, diz.

Porém, ele entende que o crime desta quinta-feira, não reflete, necessariamente, uma elevação no grau da violência no Rio. “A violência com a que estamos lidando hoje, não é especialmente mais dramática do que em outubro de 2022. O que estamos vivendo hoje é o dia seguinte de um episódio trágico, que não é padrão expressivo do que ocorre no Rio de Janeiro”, diz Trajano.

“Porque morre muita gente no Rio de Janeiro, mas as vítimas que morrem de forma violenta no Estado tem um determinado perfil e não tem nada a ver com o perfil dos três médicos”, disse, reforçando o ponto apresentado por Hirata.

“O episódio é trágico, e obviamente extrapola, e muito, fronteiras e limites de uma sociedade pacificada, de uma sociedade que vive sobre regras. Temos um padrão de violências, mas esse episódio especificamente é completamente fora da curva, em todos os seus aspectos”, completou Trajano.

Para o sociólogo Daniel Hirata, da Universidade Federal Fluminense, o problema de segurança pública do Rio é “complexo”. Ele entende que a execução dos três médicos deveria ser uma mudança de chave para mobilizar o poder público a pensar em soluções que englobem toda a diversidade do território.

“A pior solução que podemos ter é a de reforçar a segregação econômica, racial. A gente precisa pensar em soluções globais que vão beneficiar todas as pessoas, negras, brancas, aquelas que vivem em bairros mais seguros, como aquelas que vivem em bairros de maior insegurança também”, afirma o professor. “Uma vez que consigamos atuar de forma mais eficiente para o conjunto do Rio de Janeiro, todo mundo sai beneficiado”.

Castro pede envio de agentes da Força Nacional

A escalada de criminalidade levou o governador Claudio Castro (PL) pedir ao Governo Federal o envio de 300 agentes da Força Nacional para auxiliar a polícia do Rio de Janeiro no combate ao crime organizado, em especial no complexo de favelas da Maré, na zona norte. A solicitação foi atendida pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, chefiado por Flávio Dino.

Contudo, a pasta suspendeu a medida na última quarta-feira, 4, depois que Ministério Público Federal no Rio de Janeiro pediu por mais informações sobre a atuação dos agentes. Na notificação enviada ao ministério, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão pede que, em dez dias, a pasta esclareça se os agentes vão respeitar as regras estabelecidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Na última segunda, 2, Dino assinou uma portaria que cria o programa de Enfrentamento às Organizações Criminosas (Enfoc). A iniciativa prevê investimento de R$ 900 milhões e será organizada em cinco eixos: integração institucional e informacional; eficiência dos órgãos policiais; portos, aeroportos, fronteiras e divisas; eficiência da justiça criminal; e cooperação entre União, Estados e municípios e com órgãos estrangeiros. O Rio de Janeiro é um dos Estados que vai receber atenção do programa.

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