Privatização do saneamento básico é uma afronta, diz economista

Carta Capital


Na Argentina e na Bolívia experimentos semelhantes ao que se quer fazer no Brasil aumentaram os custos e afetaram a população mais carente

Em tramitação na Câmara dos Deputados após aprovação pelo Senado em regime de urgência, o projeto de lei 3.261/2019, de privatização dos serviços de abastecimento de água e de saneamento, contestado por setores do Legislativo, principalmente da região Nordeste que defendem uma sobrevida às companhias estaduais, é mais um caso de desestatização acelerada para atender aos interesses privados com desprezo à realidade das experiências concretas, sugere um levantamento do economista Felipe Silva, analista de Relações Internacionais e pesquisador do Núcleo de Estudos de Conjuntura da Facamp, de Campinas. Experiências relevantes na América Latina mostram, segundo Silva, que a privatização do saneamento concentrou recursos financeiros e resultou em exclusão social, implicou improvisações, desgastes e fragilidades regulatórias e institucionais.

“Nenhuma economia desenvolvida privatiza por princípio. É preciso fazer uma análise racional e aprofundada de cada caso, identificando prejuízos na substituição pura e simples do interesse público pelo interesse privado na gestão de negócios. Assim como no caso da reforma da Previdência, em que o modelo de capitalização foi proposto sem qualquer análise sólida sobre os impactos sociais ou mesmo os custos fiscais de transição, a ideia de privatização do setores de saneamento básico no Brasil é uma afronta às experiências já realizadas. Na América do Sul, os casos boliviano e argentino de privatizações em água e esgoto foram marcados por crescimento significativo do custos ao consumidor, afetando a população mais carente”, diz Silva.

As privatizações de água e saneamento ao redor do mundo, prossegue, ocorreram norteadas por dois grandes objetivos, a melhora da distribuição do serviço prestado e a redução da desigualdade e da pobreza. A melhora da eficiência da prestação desse serviço com frequência não foi alcançada, entretanto, porque o volume de investimento privado acabou sendo muito baixo e ainda devido ao fato de que a maior parte dos recursos financeiros obtidos pelas empresas já privatizadas provinha de subsídios públicos ou do seu endividamento próprio, chama atenção o economista: “É o caso da prestadora de serviços Aguas Argentinas, apresentada pelo Banco Mundial como exemplo brilhante de privatização de água e saneamento mas que adotou uma estrutura financeira baseada em endividamento e ultrapassou 15% do total dos recursos financeiros disponíveis. Boa parte do endividamento foi assumida nos mercados financeiros internacionais.”

O objetivo de reduzir a pobreza e a desigualdade, diz Silva, expresso nos documentos de defesa da privatização desde meados da década de 1990, não se concretizou também em Cochabamba, na Bolívia, onde os serviços de água e saneamento foram privatizados em 1999 e concedidos à empresa Aguas del Tunari. Logo após a concessão, a companhia decidiu aumentar o preço do serviço prestado em cerca de 35% . Os mais afetados foram os usuários de baixa renda, pois a nova taxa cobrada pela empresa correspondia a 22% do salário mínimo no país. A partir da desestatização, o pagamento pelo serviço teve peso importante no travamento da mobilidade social e resultou, em março de 2000, na renúncia do gabinete nacional e no cancelamento do contrato de privatização. A empresa abriu, entretanto um processo contra o governo da Bolívia.

O levantamento feito pelo economista da Facamp mostra que em Buenos Aires a Companhia Aguas Argentinas aumentou as tarifas em 88,2% entre 1993 e 2002, período em que a inflação subiu apenas 7,3%. Isso golpeou os setores mais pobres, pois o valor cobrado pelo serviço correspondia a 9% da renda familiar da população de baixa renda, enquanto para o usuário de renda média foi de apenas 1,9%. Assim como em Buenos Aires, em Tucumán, no caso da Aguas del Aconquija, uma das primeiras medidas foi uma alteração da taxa que, junto a uma nova cobrança para financiar o órgão regulador, resultou em um aumento de 106%. Além disso, adicionou-se um tarifa de “infraestrutura” que resultou em atos de desobediência civil para não pagamento dos serviços. Cerca de 86% dos contratantes aderiram às manifestações.

A alegada “deficiência do Estado” para enfrentar esses desafios tornou-se o principal argumento para aqueles que justificaram a privatização dos serviços na Argentina e na Bolívia durante a década 1990. Com a entrega a dos serviços à iniciativa privada, entretanto, a qualidade de vida da população, sobretudo de baixa renda, piorou, mostram os registros acumulados pelos dois países.

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