Sonhos desfeitos: medo de deportação paralisa comunidade brasileira nos EUA, relata enviado especial do GLOBO

Temor de batidas da imigração esvazia ruas e comércio de Newark, cidade mais populosa do estado de Nova Jersey

Por Eduardo Graça, Enviado especial — Newark, EUA
O Globo

Manifestantes protestam contra a perseguição aos imigrantes na entrada de centro de detenção privado em Newark: apesar da convocação, muitos brasileiros decidiram não participar e ficar em casa — Foto: Dakota Santiago/The New York Times

Na hora do almoço no Cantinho Mineiro, orgulhoso, como promete em suas redes sociais, de oferecer “a melhor culinária mineira em Newark”, o que mais se ouve é inglês com sotaque de Nova Jersey. O “r” final é substituído por uma vogal alargada e o “t” vira “d”, tal qual nos diálogos da série “Família Soprano” ou nas canções de Bruce Springsteen. Pede-se “buuudaaaah” em vez de “butter” e a manteiga chega em instantes. Zero problema, mas não deveria ser assim. Para desespero da dona do estabelecimento que se tornou referência da comunidade na mais populosa cidade do estado, os brasileiros sumiram.
Receita em queda

Desde fevereiro, quando se registrou pela primeira vez a presença de oficiais da Agência de Imigração e Alfândega dos Estados Unidos (ICE) no bairro de Inwood, o movimento, conta a mineira Márcia Silva, 42 anos, 20 deles em Newark, foi reduzido pela metade. E nos dois Cantinhos, o original, que fica na Avenida Wilson, onde ela recebeu O GLOBO, e na filial, o da Rua Niagara, de onde ela e seus funcionários testemunharam recentemente uma batida da ICE.

— Foi às 9h30. Eles chegaram em dois carros, com vidros escuros, e uma caminhonete. Eram uns 15 oficiais, entraram nas casas, tudo muito ostensivo. Como eu poderia não entender a funcionária responsável pela salada ficar três semanas em casa depois do que viu? Não a cobrei, se acontecesse algo com ela, me sentiria culpada. O que nos define hoje aqui, infelizmente, é o medo — diz a mineira.

Ela trabalhou por 15 anos no Cantinho original antes de comprá-lo no fim de 2019, três meses antes do início da pandemia de Covid-19. Sobreviveu pela agilidade no incremento do delivery. Superar o desafio a animou a abrir a segunda unidade. Tudo ia bem até o retorno de Donald Trump à Casa Branca.

— Hoje, preciso dos clientes americanos para seguir funcionando. Perdi metade da minha receita, em vários dias não posso contar com a equipe completa. Aos domingos, só tiro o salto quando saio do culto e venho meter a mão na massa nos restaurantes. Começo, pela primeira vez, a pensar em voltar ao Brasil.

Márcia Silva, dona do Cantinho Mineiro, conta que maioria dos frequentadores hoje é de americanos — Foto: Eduardo Graça

Ela não é a única. A empreendedora diz que a situação é pior agora do que há cinco anos, pois muitos brasileiros estão “economizando cada centavo” para reiniciar, se obrigados, a vida no Brasil. Comida fora de casa, inclusive o delivery, tornou-se um luxo.

No dia de verão em que O GLOBO esteve em Inwood, as ruas centrais, normalmente repletas de consumidores, estavam vazias. M., de 26 anos, goiano, entrou e saiu rapidamente de uma farmácia e contou que fazia uma “extravagância”. Só tem saído de casa pouco antes da alvorada, boné e óculos escuros, para trabalhar em uma obra. Volta no fim da tarde, com receio de ser detido. Gasta o mínimo e junta o máximo para “voltar ao Brasil antes de ser pego”.

20% da população

Estimativas oficiais dão conta de que Newark reúne hoje 50 mil pessoas de origem brasileira — quase 20% de sua população — mas a comunidade aposta que eles são mais. Fundada por puritanos ingleses no século XVII, eles próprios imigrantes, a cidade ganhou fama, desde 1928, pelo aeroporto internacional de mesmo nome, o primeiro do país com pista asfaltada, e um dos mais movimentados do planeta, com voos diários para o Brasil perto de Nova York. Fatores que, junto com a tradicional presença de imigrantes portugueses, atraíram os brasileiros desde a segunda metade dos anos 1970.
Uma corrida de trem a Manhattan é feita em apenas 40 minutos. Além de trabalharem na ilha em diversas funções na área de serviços, eles dominaram a área de limpeza de empresas e a construção civil. Depois, começaram, como Márcia Silva, a empreender. Os dados oficiais recentes mostram que “imigrantes sem documentos pagaram US$ 1,3 bilhão em impostos municipais e estaduais em 2022”.

Uma das festas mais tradicionais da cidade é a Junina, que, conta Rodrigo de Godoi, presidente da Mantena Global Care, referência no acolhimento de brasileiros na cidade, atrai mais de 100 mil pessoas. Este ano, ela não aconteceu. Foram mantidas, no salão do segundo andar da organização, as celebrações voltadas para crianças com deficiência e as famílias que enfrentam o câncer.

— A comunidade é muito dinâmica, tem participação importante na economia da cidade, mas não era a hora de celebrar. A prefeitura nos ajuda muito, inclusive com mantimentos para quem não está trabalhando, pela redução de postos ou por medo.
Em maio, o prefeito Ras Baraka, do Partido Democrata, foi preso ao tentar conferir as condições da unidade de detenção da ICE na cidade. Grupos de defesa de direitos humanos denunciavam maus-tratos a imigrantes no local. O governo nega.

Protesto esvaziado

Dias antes, Baraka protagonizara outro episódio citado com emoção por vários brasileiros ao GLOBO em Newark — o político convocou os cidadãos a protestar contra a perseguição aos imigrantes. As imagens mostram uma maioria de negros, como Baraka, brancos e asiáticos, irados na manifestação. Muitos brasileiros ficaram em casa, escondidos.

O cenário não é exclusivo de Newark. Advogada especializada em imigração e radicada no Oeste dos EUA, S. confirma o baque na economia tanto para imigrantes que trabalham em áreas voltadas para o “nicho hispânico” quanto para americanos que dependem da mão de obra oferecida por cidadãos de outros países. Ela participa de um grupo que reúne mais de uma centena de advogados brasileiros em atividade no país.

— Hoje atendo os clientes remotamente, pois eles temem o reconhecimento facial e ir a locais visados pela ICE. Entre os afetados estão pessoas que levaram anos para juntar dinheiro com o objetivo de empreender, abrir franquias, restaurantes, lojas e casas de show. É como se o público-alvo, de um dia para o outro, tivesse evaporado.

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