Edição de Sábado: Uma guerra sem espólios


Por Flávia Tavares

Entre a cama e o banheiro daquele quarto de hotel, na região central de Kiev, havia uma parede de gesso, que formava um vão. Foi ali que Gabriel escolheu dormir, no chão mesmo. A suíte era envidraçada do chão ao teto, tinha vista panorâmica — baita ativo para turistas, péssimo para repórteres de guerra. O premiado fotógrafo e documentarista Gabriel Chaim cobre zonas de conflito desde 2013. Reconhece os perigos que os olhos de rotina são incapazes de notar. Aqueles vidros, ao eventualmente se tornarem estilhaços, podiam cortar-lhe o pescoço. Isso o irritava e lhe tirava o sono. Se sua memória não o trai, ele chegara à Ucrânia três dias antes, vindo da Síria, onde acompanhou uma rebelião de presos do Estado Islâmico. Kiev parecia indiferente a qualquer ameaça. Não havia confirmação alguma de que uma invasão da Rússia realmente aconteceria ou quando. A intenção inicial de Gabriel era passar alguns dias ali e seguir para Moscou, tinha contato com jornalistas russos. Mas uma bomba às quatro da madrugada do dia 24 de fevereiro de 2022 alterou, num instante, seus planos, as vidas dos ucranianos e o contorno da geopolítica atual.

Os dez anos prévios de vivência em fronts de guerras e a experiência de Gabriel na Ucrânia estarão retratados no livro Em desconstrução — As Guerras de Gabriel Chaim, a ser lançado na segunda quinzena de março pela editora Afluente. Essa bagagem rendeu ao fotógrafo uma noção de risco iminente. A explosão, talvez abafada pelas janelas lacradas, parecia distante o suficiente para que ele a desconsiderasse e dormisse mais um tantinho. Como alguém que acorda naturalmente cedo, pouco depois de 6h ele já estava indo tomar café no restaurante do hotel. Foi quando viu as dezenas de mensagens em seu celular. A guerra na Ucrânia havia começado. Uma justificativa inicial da invasão: a Rússia não queria que a Ucrânia se aproximasse da Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan. Sentia-se acuada com os ímpetos expansionistas do Ocidente e a possibilidade de os Estados Unidos terem um aliado musculoso em sua fronteira. Permeando esse discurso está o ego czarista de Vladimir Putin, que já se comparou a Pedro, o Grande, sem enrubescer. E algumas autoridades ucranianas dizendo que a condição para a paz é que se retome o desenho de fronteiras de 1991.

Naqueles poucos dias em Kiev, Gabriel já havia estabelecido alguns laços de amizade. Sentiu-se compelido a ficar. Duas semanas depois do início da guerra, Alexander, seu conhecido russo, questionou se ele ainda iria a Moscou. “Eu sempre fui parcial. Não vou nunca escolher o lado do opressor para fazer a cobertura. Nunca tive vontade de estar ao lado do soldado do Bashar al-Assad, por exemplo. E eu senti que, na Ucrânia, era uma parada de opressão”, diz o fotógrafo de voz rouca. Sem pausar, Gabriel emenda uma série de nuances nesse retrato em preto e branco. Lembra que há regiões inteiras no país, como a de Mariupol, onde sequer se fala ucraniano. Registra que, embora sensivelmente minoritários, há, sim, ucranianos que se sentem mais russos. E grifa, com bastante tinta, que não defende, de forma alguma, a posição do Ocidente no conflito, em particular dos Estados Unidos, para quem “a Ucrânia é tão somente um mal necessário”. “Eles estão bombardeando a Rússia para saber até onde podem ir, entendendo o que é o exército russo. Isso sem morrer um militar da Otan. É uma estratégia que está funcionando e, para eles, é interessante que continue.”

Nada disso anula sua visão inicial de que a Rússia é a opressora. A cátedra, neste caso, vem do relato de amigos tchecos e eslovacos, que estiveram sob a tutela soviética, e do que ele próprio testemunhou na Síria, fortemente apoiada por Vladimir Putin desde 2015. “Quem conhece o poder destrutivo, o jogo sujo da Rússia em determinados locais, sabe do que eles são capazes. Eu cubro a guerra da Síria desde o início. Vi de perto a devastação que eles causam.” Na Ucrânia, a Rússia reaplicou algumas estratégias empregadas na intervenção síria, entre elas a de fazer uma guerra em fases. A primeira foi uma tentativa de imprimir um blitzkrieg por terra, água e ar nas semanas iniciais — é provável que o leitor se lembre daquele comboio de tanques russos que chegou a formar uma fila de 56 quilômetros (e depois desapareceu). A tática primordial era usar mísseis, de variados tipos e tamanhos, para suprimir o sistema de defesa aérea ucraniano, bastante robusto. É por isso que Gabriel, ao descrever o que a guerra da Ucrânia tem de diferente das demais que acompanhou, menciona uma sensação de onipresença dos ataques, de não saber de onde eles podem vir e a que momento. “Esta é uma guerra que nenhum jornalista que cobre conflitos tinha experimentado desde a Segunda Guerra Mundial, por conta do tamanho do poderio bélico dos dois lados. É muito raro haver confronto de pessoa contra pessoa. É uma guerra de artilharias. Uma chuva. Você está andando na rua, escuta a sirene, ouve um 'shwwwwwwww' e tem o tempo de correr pra tentar se proteger.”

Foi com essa ubiquidade em mente que, no dia 15 de março, Gabriel seguiu num furgão americano antigo com um colega eslovaco para fazer imagens de um dos primeiros ataques a prédios residenciais na periferia de Kiev. Não fora um ataque direto, mas uma interceptação de um desses mísseis russos. Blindado com seu pequeno colete verde, ainda que mais pelo efeito psicológico, seu capacete e com sua Leica em punho, Gabriel sabia que não podia ficar exposto do lado de fora. As sirenes seguiam tinindo. Alguns corpos, já cobertos, estavam sendo recolhidos pela Defesa Civil. Ele atravessou o isolamento e entrou no edifício. O restolho do míssil não atingiu a construção, caiu lateralmente. Mas a onda do impacto detonou a fachada e apartamentos foram cortados pela metade. Um cheiro de queimado, poeira e obra se esparramava. Havia pessoas varrendo, tirando alguma coisa de suas casas completamente devastadas. O foco de Gabriel está invariavelmente nas pessoas. Ele viu uma senhora de cerca de 70 anos chorando. Enquadrou sua amargura e clicou. É essa a imagem que ilustra esta Edição de Sábado e uma das que mais marcaram o documentarista nos meses em que ele esteve na Ucrânia.

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Apesar da violência dos ataques de mísseis em regiões periféricas de Kiev, a capital parecia, semanas depois do início do confronto, relativamente protegida. E Gabriel sempre soube que cobrir uma guerra é estar perto da morte. Por mais medo que se sinta — e ele sente. Em abril, ele foi para a estratégica Karkhiv, segunda maior cidade ucraniana, na fronteira leste com a Rússia, conquistada pelas forças de Putin logo nos primeiros dias. Nenhuma movimentação, nesse início da guerra, se dava com tranquilidade. Havia militares e postos de controle em toda parte, turbinados pela desconfiança generalizada, espalhada pela inteligência ucraniana, de que havia “sabotadores” por toda parte. “Foi a primeira vez num conflito que escutei essa palavra sendo dita ostensivamente. Qualquer pessoa era suspeita. As abordagens eram violentíssimas: Kalashnikov na cara, engatilhada. E jornalistas estavam especialmente sob suspeita e se tornaram alvos, porque havia informação de que os sabotadores estavam usando carro e crachá de imprensa. Devia ter alguma verdade nisso”, lembra Gabriel.

A agressão vinha, no entanto, principalmente do lado russo. “Boa parte desses soldados da linha de frente da Rússia não são do exército russo, são chechenos do [Ramzan] Kadyrov, ou do Wagner Group. Não têm critério algum de nada. O jornalista não está protegido por conta de estar usando o símbolo de Press. Somos o os primeiros a ser atingidos.” Aliás, ele frisa, esta é outra diferença da guerra na Ucrânia para as demais que ele já cobriu: nas outras, havia sempre algum tipo de ajuda, orientação, um plano de mídia para os repórteres, normalmente oferecida por escritórios de imprensa das forças militares. Na Ucrânia, essas informações só chegavam para CNNBBCNew York Times, os gigantes. Gabriel estava lá pela Globo e pela RTL, maior emissora alemã. Não foi suficiente para receber o apoio. Ele navegava no escuro por estradas longuíssimas, desertas — hoje, a linha de batalha está na casa dos mil quilômetros.

Karkhiv estava erma. Artilharias atingiam a cidade várias vezes ao dia. O quarto de hotel de Gabriel, num segundo andar, dava de frente para a rua. Às 15h do dia 17 de abril, ele assistia a algo em seu computador, vidros abertos, quando ouviu o familiar “shwwwwww”. Uma fumaça “pretejando” infiltrou a suíte. O fotógrafo sempre deixa o colete verde junto da câmera, como que a escoltando. Ele agarrou o kit, foi para o corredor e, ao tomar coragem para descer, entendeu que um foguete Grad havia sido lançado a 30 metros do hotel. “As pessoas morreram ali na esquina. Fiz uma imagem [conteúdo sensível] de uma mulher com uma sacola de supermercado, ela tinha acabado de morrer...” Gabriel diz que sente muito medo. Mas que é esse temor que o faz sobreviver. Hoje, passado um tantinho dos 40 anos, ele já não se lança em qualquer situação. Especialmente depois de um episódio em 2019, quando cobria, também na Síria, um confronto com o Estado Islâmico. “Um míssil RPG passou a 30 centímetros da minha cara e atingiu o cara do meu lado. O fotógrafo italiano que estava junto, a 1,5 m de mim, perdeu dedo, ficou cego. A partir desse momento, comecei a me policiar mais em relação ao perigo.” Na guerra seguinte, entre Azerbaijão e Armênia, ambos os lados com artefato russo e, no sentido do uso de artilharia, uma espécie de Ucrânia reduzida, Gabriel já foi mais cauteloso e “dava aquela respirada” antes de ir para determinados lugares. Isso não o impediu de ir para Bucha e Irpin, por exemplo, cidades geminadas a Kiev onde algumas das batalhas mais sangrentas aconteceram.

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Karkhiv foi recuperada pelas forças ucranianas numa contra-ofensiva em setembro de 2022 que levou Putin a convocar 300 mil combatentes para lutar — provocando imediatamente uma fuga de russos do país. Ucrânia e Rússia travaram diferentes guerras nesse um ano, como explica sir Lawrence Freedman, professor emérito de Estudos de Guerra no King's College e autor de Command: The Politics of Military Operations From Korea to Ukraine. A Ucrânia, talvez por estar na defensiva, faz uma “guerra clássica”, visando as forças militares russas. A Rússia, por sua vez, mira na Ucrânia como um todo, seu povo, sua infraestrutura e os alvos militares, travando uma “guerra total”. A primeira forma era a prevalente antes da Primeira Guerra Mundial. Guerrear era colocar exércitos em posições de batalha e fim. A Grande Guerra mudou essa perspectiva e deu relevância para o conflito subjacente, entre as forças econômicas e industriais. Diluiu-se a divisão entre alvos civis e militares — afinal, exércitos usavam a infraestrutura civil para lutar; as fábricas de munições e armas dependiam de uma força de trabalho civil; quando faltavam homens no front, civis eram convocados. Não havia mais inocentes. Esse pensamento atravessou o século 20, levando os Estados Unidos a lançar as bombas atômicas em 1945.

Só que ficou claro que uma mentalidade de guerra total era o caminho para um conflito nuclear. Além disso, o advento de mísseis guiados, na década de 1970, permitia ataques muito mais direcionados. A guerra clássica voltou a fazer sentido — a não ser em casos em que os confrontos enfrentaram contra-insurgências importantes, como no Iraque e no Afeganistão. Não para a Rússia. A tática de guerra total nunca foi abandonada pelo Kremlin, vide a atuação na Síria. “Na Ucrânia, isso incluiu mirar mísseis em Kiev e em outras cidades, arrasar complexos de apartamentos e às vezes cidades inteiras, atacar a infraestrutura de energia e fazer cercos prolongados, como contra Mariupol na primavera, Severodonetsk no verão e Bakhmut mais recentemente”, explica o historiador Freedman. Ainda assim, a Rússia não está no modo “guerra total” absoluto contra a Ucrânia, já que até aqui recuou do uso de armas nucleares, ainda que em menor escala, no conflito. No início da guerra, Putin chegou a invocar essa carta para intimidar a Otan.

Por outro lado, Kiev também não está equipada a altura para inibir de forma definitiva os ataques russos. E isso se deve por limitações impostas por seus aliados ocidentais. Os Estados Unidos negaram à Ucrânia uma artilharia de longo alcance, por exemplo — embora estejam agora prometendo uma leva de tanques para reforçar a ofensiva terrestre. O professor Freedman aponta que assim como Ucrânia e Rússia, ambas parte da União Soviética até 1991, têm uma história militar compartilhada, a influência ocidental pós-anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, está se sobrepondo às forças ucranianas. O esforço de Moscou de “russificar” pedaços da Ucrânia tem, em larga medida, mantido o país unido e resistente à guerra “quase total” imposta pelos russos. Depois da virada em Kharkiv em setembro, a Ucrânia vai receber veículos blindados, incluindo tanques Challenger, Leopard e Abrams fornecidos pela Europa e pelos EUA — só não se sabe exatamente quando. Enquanto isso, mesmo com desarranjos entre seus mercenários e militares, a Rússia se reorganiza para uma nova ofensiva. É uma guerra que não parece ter um “vencedor” no horizonte, quanto mais espólios a serem coletados — estima-se que a reconstrução da Ucrânia possa custar até US$ 750 bilhões. “A Rússia perseverou com estratégias ineficientes e caras, talvez na crença de que, no final, seu tamanho e disposição para aceitar sacrifícios prevaleceriam. Por outro lado, a rota da Ucrânia para a vitória depende de empurrar as forças russas para trás o suficiente para persuadir Moscou de que embarcou em uma guerra inútil”, completa Freedman. E tudo isso depende, claro, dos movimentos de dois grandes players: os Estados Unidos, do lado ucraniano, e a China, do russo.

Gabriel esteve na Ucrânia em novembro, por cerca de um mês. Viu uma Kiev com barricadas desmontadas, cafés e restaurantes cheios, as pessoas em busca de alguma normalidade. “A palavra principal é incerteza. As pessoas viviam naquela incerteza do amanhã. Os sírios vivem assim desde 2011 e não existiu essa comoção mundial pra tentar mudar o panorama de lá... Essa busca por algum tipo de normalidade não é uma coisa isolada dos ucranianos, é do ser humano, que se adapta às circunstâncias adversas. Em todos os lugares em que eu fiz cobertura de conflito, presenciei a mesma coisa: as pessoas vão se adaptando às situações, por mais graves que sejam.” Entre as incursões na Ucrânia, Gabriel, nascido em Oriximiná, na floresta Amazônica, veio ao Brasil para acompanhar outra tragédia, a dos ianomâmis. É entre batalhas, contando a história dos oprimidos, que Gabriel Chaim registra o mundo.

O MUNDO E O BRASIL DISCUTEM OS LIMITES DAS REDES

Por Luciana Lima

A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) realizou, em Paris, durante o Carnaval, o fórum internacional “Internet for Trust”, tratado no Brasil como fórum “por uma internet confiável”. A jornalista Bia Barbosa, membro da Coalizão Direito nas Redes e pesquisadora do DiraCom — Direito à Comunicação e Democracia, participou do evento e conversou com o Meio sobre os principais eixos de discussão. Para ela, o debate sobre regulação das plataformas é urgente no Brasil, país que se tornou um exemplo internacional a ser observado, quando se fala dos efeitos das fake news. A palavra-chave para Bia Barbosa, nesse debate, é “equilíbrio”. Confira os principais trechos da entrevista.

A Conferência da Unesco tratou da necessidade de se combater a desinformação e o discurso de ódio nas redes sociais. Que caminhos você vislumbra para as redes no mundo?
A conferência da Unesco mostrou que a discussão sobre regulação das redes sociais, em função do enfrentamento aos conteúdos ilícitos ou que promovam desestabilização de democracias e violem direitos humanos, está colocada. É um debate em que o mundo está muito interessado. A gente tinha mais de 1.500 pessoas no evento e 4 mil participando remotamente. Não se trata mais de dizer se as plataformas digitais vão ser reguladas ou não. Trata-se de entender como elas vão ser reguladas. Há um conjunto muito grande de temas que podem perpassar esse debate, inclusive a questão da concentração econômica dessas grandes empresas. O Grupo Meta, por exemplo, hoje é dono de três dos principais aplicativos de mensagens: Facebook, Instagram e WhatsApp. Essa concentração comercial também significa uma concentração de dados dos usuários. Na economia atual, isso significa muito poder e muita informação para essas empresas. E muito risco para os usuários.

Quais as alternativas de regulação das redes?
Há países não democráticos que optam por uma regulação que vai determinar que as plataformas saiam derrubando esse tipo de conteúdo. Nesse caso, as plataformas têm que interpretar a legislação daquele país e derrubar os conteúdos em função disso. Isso traz riscos muito significativos para a liberdade de expressão. Outra forma de regular isso é, por exemplo, e dar mais transparência e estabelecer procedimentos democráticos para determinar como essas informações circulam dentro das redes. É necessário enfrentar os problemas gerados por esse modelo de negócio, baseado em engajamento, em cliques, e de busca pela maior atenção possível do usuário dentro dessas redes, justamente para que mais dados pessoais possam ser coletados nessa navegação. Em função desse atual modelo, você acaba tendo um incentivo para que esses conteúdos, que geram mais engajamento, circulem mais. Nessa lógica, é muito mais interessante receber uma notícia sensacionalista, que muitas vezes pode ser falsa, do que um fato verdadeiro. A Unesco está fazendo um processo de consulta. Há um rascunho sendo desenhado e ele deve ser lançado no próximo mês. São guide lines que a Unesco colocará à disposição e, obviamente, cada país vai ter a sua para definir como vai regular isso no âmbito local.

E como o Brasil se coloca nesse desafio?
O Brasil ganhou muita atenção nessa conferência por dois motivos. O primeiro é porque somos uma das maiores democracias do mundo e esse modelo de negócio das plataformas acabou levando a um cenário de profunda disseminação de notícias falsas, de violência política e de discurso de ódio. Isso teve impacto enorme na pandemia e quase custou a integridade do processo eleitoral, incluindo aí os ataques às instituições democráticas brasileiras que aconteceram no dia 8 de janeiro e que foram organizados e orquestrados nessas redes. O Brasil é um case internacional para se olhar quando se considera a urgência de regular as redes sociais. Outro motivo é porque isso entrou na agenda política, nas prioridades do presidente Lula. O Brasil, antes do processo eleitoral, já vinha discutindo esse fenômeno, passamos dois anos discutindo no Congresso Nacional o projeto de lei 2630, apelidado de projeto de PL das fake news. Na verdade, trata-se de um projeto de regulação de plataformas.

Qual sua opinião sobre ele?
O PL estabelece obrigações de transparência para o devido processo de moderação dos conteúdos, ou seja, as plataformas podem moderar conteúdo, mas elas precisam garantir procedimentos democráticos para não cercear a liberdade de expressão dos usuários. Claro que só esse projeto não é suficiente do ponto de vista de todo o debate de regulação de plataformas, mas pode ser um primeiro passo importante, enquanto a discussão segue para uma perspectiva mais sistêmica e ampla, que precisa incluir a possibilidade de criação de um órgão regulador para as plataformas no país. Uma coisa que ficou muito clara na Unesco é que as chamadas big-techs precisam sentar à mesa para discutir como essa regulação deve acontecer, pensando em mecanismos de co-regulação, não só regulação estatal. Até porque é quase impossível o Estado regular se não houver uma perspectiva de colaboração para que elas abram seus dados, sejam transparentes e nos ajudem a dar respostas a esses problemas que estão colocados.

Quais são os principais obstáculos a serem enfrentados no Brasil para uma "internet confiável”?
Precisamos enfrentar o debate sobre os limites da liberdade de expressão, que nunca fizemos decentemente. Todas as vezes em que se tentou fazer um debate sobre a regulação dos meios de comunicação e sobre a responsabilidade da mídia e da imprensa esses próprios grupos de comunicação sempre plantaram a ideia de que qualquer regulação vai ser censura.

O governo brasileiro enviou à ONU a carta na qual defende uma regulamentação das plataformas. Há acolhimento dessa ideia por parte de outros países?
Sem dúvida nenhuma, tem um debate internacional a ser feito e eu acho que o Brasil pode ocupar um lugar de liderança nessa discussão. A questão é que a regulação vai ter que ser dada nos estados nacionais por cada país e de acordo com a suas especificidades, com a sua realidade. Existem regiões do mundo em que a questão do acesso à internet, por exemplo, é um problema superado e que isso não interfere em como essas plataformas são acessadas pela população. Tem países como o Brasil onde você tem uma desigualdade enorme no acesso.

O ministro Luís Roberto Barroso, do STF, defendeu a flexibilização do Marco Civil da Internet para enquadrar as big-techs sobre a divulgação de conteúdos de incitação a crimes, terrorismo e pornografia infantil. Você acha que isso é possível? 
A gente precisa ter muito cuidado com o que vai determinar para as plataformas como dever de remoção de conteúdo. Uma coisa é você falar de terrorismo e de pornografia infantil, que são questões muito específicas e onde há poucos tons de cinza para você definir essas atitudes e interpretar o que é esse tipo de conteúdo. Quando você vai para temas como discurso de ódio, por exemplo, é super sério, mas sequer está definido na nossa legislação. Há um monte de tipos penais problemáticos no Brasil. Não deveríamos mudar o regime de responsabilidade das plataformas que está colocado no Marco Civil. Ele diz que as plataformas não são diretamente responsáveis pelos conteúdos postados por terceiros. Precisaríamos trabalhar com algumas exceções, como algumas já existentes, por exemplo, em relação à divulgação de imagens íntimas não consentidas. Precisamos encontrar qual é esse equilíbrio. Que legislação é essa que vai proteger a nossa democracia, direitos fundamentais que precisam estar garantidos dentro desse ambiente digital, mas sem cercear o exercício legítimo da liberdade de expressão?

No caso das plataformas, o que é possível esperar?
Em relação às plataformas, obviamente, haverá resistência porque estamos, justamente, questionando a forma como elas operam e lucram e como elas hoje estão no topo das empresas mais lucrativas globais. São os maiores capitais do mundo. Claro que vai haver resistência e isso já pode ser visto muito de perto no Brasil, na discussão do projeto de lei. As plataformas lançaram até campanhas desinformativas sobre possíveis consequências, desinformando a população, para que ela convencesse os parlamentares a se posicionarem contra o texto.

"THE KICK INSIDE" E O UNIVERSO CRIATIVO DE KATE BUSH

Por Micaela Santos

Morro dos Ventos Uivantes, romance da escritora britânica Emily Brontë publicado em 1847, é hoje considerado um clássico da literatura mundial. Só no cinema, a obra ganhou 10 adaptações, sendo a primeira em 1920. O tórrido romance entre Catherine e Heathcliff e a história fantasmagórica de obsessão, vingança e paixões intensas também inspirou uma jovem cantora inglesa, que aos 18 anos compôs Wuthering Heights, o single de maior sucesso de seu álbum de estreia, The Kick Inside (YouTube e Spotify), lançado em fevereiro de 1978. Tão intenso quanto a história de Brontë, o primeiro álbum da Kate Bush que completa 45 anos em 2023 marca o início de uma discografia e carreira musical complexas, de uma jovem que já aos 13 anos começou a compor suas primeiras canções, com a ajuda de seus irmãos.

O álbum The Kick Inside nasceu numa época em que o experimentalismo do rock progressivo, além do punk, crescia cada vez mais no Reino Unido, sendo YesGenesis e o Pink Floyd os maiores expoentes dessa cena musical. Foi nesse contexto que, certo dia, um amigo de Kate apresentou suas canções demo para David Gilmour, guitarrista do Pink Floyd. Ele ficou encantado com a originalidade e a voz expressiva da jovem Kate, e seu papel na produção das primeiras músicas da cantora foi fundamental para que a gravadora EMI assinasse com a artista.

Embora seja altamente influenciado pelo progressivo, The Kick Inside é apenas uma amostra do quão difícil é definir a sonoridade de Kate Bush. Criada em uma família de artistas, com pais que se aventuraram pela música e dança, além dos irmãos fotógrafos e poetas, Catherine Bush, que nasceu em Bexleyheath, na Inglaterra, sempre teve a multidisciplinaridade da arte como influência. Mas todas as inspirações ajudaram Kate a criar seu próprio universo criativo. Sua voz e seu jeito único de cantar e compor não se encaixavam em nada. Isso fica evidente logo nos primeiros segundos de Moving (YouTube), cujo o silêncio é rompido pelo som de uma baleias ecoantes. Em The Saxophone Song (YouTube), Kate abre as portas para o slow-rock, e Strange Phenomena (YouTube) traz como um dos elementos a guitarra funky. Em Kite (YouTube), a artista aposta no raggae-rock, seguida pela doce balada The Man With The Child In His Eyes (YouTube).

Além do forte desejo por explorar sonoridades criativas e não convencionais, a dança e a dramaturgia também dão o tom para o álbum, tornando The Kick Inside uma obra completa. À época da produção do disco, Kate estudou dança interpretativa com Lindsay Kemp — que teve grande influência na criação do personagem mítico de David Bowie, Ziggy Stardust — e mímica com Adam Darius. O resultado disso pode ser visto nas produções audiovisuais de Kate — como no clipe clássico de Wuthering Heights (YouTube) e de The Man With Child In His Eyes (YouTube). Em Wuthering Heights, Bush aparece de vestido vermelho e flor no cabelo, numa dança interpretativa carregada de mímicas e expressões, ambientada em um campo. Na segunda versão (YouTube), que foi lançada no Reino Unido, ela canta num quarto negro cheio de névoa branca, usando um vestido também branco.

No lado B do álbum, James And The Cold Gun (YouTube) abre com um pouco do punk britânico, seguido pela calmaria Feel It (YouTube) que combina a voz aguda e singular de Kate ao piano. O rock progressivo e o barroco se misturam em Oh To Be In Love (YouTube) até chegarem na balada L’Amour Looks Something Like You (YouTube). Já Them Heavy People (YouTube) é alegre e vibrante ao explorar o conceito de crescimento pessoal e iluminação pessoal misturando rock, pop e ritmos africanos. O disco encerra com Room For Life (YouTube) e a faixa-título (YouTube). Além de David Gilmour, membros de The Alan Parsons Project são alguns dos nomes que ajudaram no álbum.

Kate Bush ainda não tinha 20 anos quando o disco foi lançado. As críticas foram pesadas. O jornal The Guardian a chamou de “combinação estranha de astúcia e falta de arte” e a descartou como uma “opção mediana suave”. A despeito de seus críticos, The Kick Inside alcançou a posição número três nas paradas do Reino Unido e recebeu certificação de platina pela British Phonographic depois de vender 300 mil cópias. Kate Bush tornou-se a primeira mulher a escrever e cantar a própria música a atingir o topo das paradas britânicas. Wuthering Heights ficou entre os 10 singles mais vendidos de 1978, com mais de meio milhão de cópias, e continua a ser até hoje o mais vendido de Kate. A música também ganhou inúmeras versões ao longo dos anos, como da americana Pat Benatar (YouTube) e da banda brasileira de power metal Angra (YouTube). Tão cheia de peculiaridades quanto a própria personalidade da cantora, a obra musical de Kate influenciou gerações e continua a reverberar na cultura pop atual. Prova disso é Running Up That Hill, que alcançou o primeiro lugar nas paradas após 36 anos ao ser tema da quarta temporada de Stranger Things. Tão surpreendente, mágico e único quanto simplesmente ser Kate Bush.

FOLIA DE MILHÕES

Por Olavo David

Foram dois tenebrosos anos no país que respira Carnaval, conhecido internacionalmente por sua folia. Em 2023, ao menos de forma oficial, os batuques voltaram às principais avenidas do Brasil. No Recife, o Galo da Madrugada, maior bloco de rua do mundo, teve sua mascote, o Galo Preto Ancestral, como alvo de profundas análises quanto a sua estética – inclusive com manifestações racistas, forçando o prefeito João Campos (PSB) a ir às redes e pedir respeito. Para além disso, houve o velho debate de qual Carnaval é o melhor do Brasil, com Eduardo Paes (PSD-RJ) puxando as brincadeiras via Twitter

Na capital fluminense, além da vitória da Imperatriz Leopoldinense na Sapucaí, a população – e os turistas, claro – tomaram as ruas em diversos blocos. Teve bloco contra a monogamia celebrando casório, a geração Z festejando seu primeiro Carnaval, e o Cordão da Bola Preta, no Centro histórico da cidade, arrastando 1 milhão de pessoas. Enquanto isso, em Salvador, a folia do “povo a mais de mil” só vai parar amanhã, mesmo que a festa já tenha contado com mais de 2,7 milhões de turistas neste 2023. Em São Paulo, a Mocidade Alegre faturou o título no Sambódromo. Nas ruas, debaixo de muita chuva, teve bloco pra todo gosto, inclusive o Blocolândia, organizado por e para dependentes químicos que vivem na famigerada cracolândia, no centro da cidade, que desfilou pelo oitavo ano seguido. A ideia é que as pessoas “troquem o cachimbo pela baqueta” e curtam a folia em paz, sem olhares de soslaio e sem ”arrochos" policiais. 

Numa semana marcada pela tragédia no Litoral Norte de São Paulo, aqui estão os mais clicados pelos leitores:

1. g1Casa de favela mineira ganha concurso internacional de arquitetura.

2. Globo: O antes e depois da tragédia no litoral paulista.

3. UOL: Seca leva gôndolas a encalhar nos canais de Veneza.

4. FolhaJimmy Carter quer morrer em casa.

5. g1: O maior navio da Marinha chega a São Sebastião.

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