OS MEUS PAPAS



Acordei tarde neste feriado: o mundo já estava impregnado da morte de Francisco. Não me surpreendi: ele foi pedagógico, ensinou que estava se acabando e até redefiniu os rituais fúnebres (torçamos para que seja obedecido). Foi um bom professor. Habituou os discípulos ao que viria.

Foi meu quinto papa: Paulo, os dois João Paulo, Bento e ele. Entrei na igreja católica pelas mãos da tradição, inebriado pela força feminina da família (minha mãe, minha tia-avó beata e duas tias-avós freiras), mas com uma semente de desconfiança pela aversão (nunca explicada) de meu pai à religião. Era o tempo de Paulo.

Ao descobrir a Teologia da Libertação na pós-adolescência, um período naturalmente inquieto da vida, passei a ver o cristianismo com outros olhos, com um olhar mais social que litúrgico, e entoei (desafinado como sempre) mais canções de questionamento que hinos de louvor, em grupos jovens e pastorais. Era o tempo do segundo João Paulo, que o primeiro nem esquentou o trono.

A libertação da opressão do povo reverberou dentro em mim como libertação interior, de alguns conceitos arcaicos, do tempo de Paulo; e caminhei perigosamente para as bordas da tal fé, às quais me levava a racionalidade. Acabou que aquela semente de desconfiança, herdada de meu pai, foi brotando, ganhando espaço e, regada por leituras e observações, me fez entender (ou aceitar) de que matéria eram fabricadas as religiões. Fui me afastando mais e mais. João Paulo, o que mais demorou, foi adquirindo outras conotações nas minhas concepções sociorreligiosas. Isso ficou bem nítido ao comparar o impacto, em mim, da primeira e da segunda vinda dele ao Brasil.

Assisti ao avanço estranhamente rápido e rastejante das religiões evangélicas e a guinada escancarada do catolicismo, distanciando-se cada vez mais do povo que existia (e sofria), em direção carismática ao nada de nuvens e anjos e louvores. Essas coisas de fé, de deus, de cânticos, foram ficando cada vez mais próximas da boca que do cérebro das pessoas. O tempo de Bento foi pródigo para solidificar isso.

Depois (e agora) os evangélicos assumiram abertamente seu papel de insaciáveis exploradores da ingênua fé do povo e construíram imensos impérios econômicos; e os católicos invadiram a mídia, com padres virando pop-stars, em suas calças justas, topetes imensos e multidões de fanáticos sexualizados pela sua esdrúxula figura de sacerdotes new wave tardio. Foi o tempo de Francisco, que procurou pisar um pouco no freio desse desembesto todo, sendo por isso fortemente achincalhado por uns e endeusado por outros, que o mundo se tornou finalmente essa porcaria dual, dicotômica.

Percebi que a crença na espiritualidade, na divindade, está muito mais no povo, nos chamados (não por acaso) “fiéis”. Quanto mais graduado na estrutura religiosa é o “cristão”, menos fé e mais senso político de organização e poder ele detém e alimenta. Se essas duas coisas rivalizam-se na mesma pessoa, ela deve sofrer muito, até adoecer da matéria e terminar morrendo na madrugada de um feriado nacional brasileiro.

Caminhemos agora para acompanhar mais uma daquelas reuniões sinistras, do outro lado do Atlântico, em que velhos cardeais incomunicáveis com o resto do mundo, mas bastante interativos entre si, avaliam, negociam, regateiam, avançam, recuam, cedem, enquanto o aflito mundo cristão, cá fora, mira com ansiedade a chaminé da qual sairá, simbolicamente sob a forma de fumaça branca, o resultado dessa reunião cheia de milenares segredos e rituais.

Alguns dias mais e alguém vai e anuncia, entre pompas e solenidades, que habebimus papam iterum – o Google me diz que é assim, pois nada entendo de latim: teremos papa novamente. O meu sexto.

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