Pepsi continua a número 2, mesmo atacando a Coca, diz 'pai do marketing moderno'
O especialista em marketing Philip Kotler - Divulgação
Philip Kotler afirma que grandes marcas mantêm liderança lembrando constantemente seus clientes do que prometem entregar
Folha de São Paulo
Em 1967, pouco depois de começar sua carreira como professor universitário na Kellogg School of Management, da Universidade Northwestern, em Illinois (EUA), o economista americano Philip Kotler publicou o livro "Administração de Marketing: Análise, Planejamento e Controle". Até hoje a obra, na sua 16ª edição, é considerada a "bíblia do marketing" e já foi apontada pelo jornal Financial Times como um dos 50 melhores livros de negócios de todos os tempos.
O livro destrincha a teoria dos "4Ps do marketing": preço, praça, produto e promoção, os fatores que precisam ser levados em conta para planejar e executar estratégias de vendas. Kotler defende que o marketing está estritamente ligado à economia não apenas pelo preço mas por direcionar a demanda, que pode ser alterada de acordo com os canais de distribuição.
Para o economista, o lucro precisa estar associado ao bem-estar do consumidor e da sociedade: a competição deve levar à evolução constante de serviços e produtos, de acordo com o perfil de cada público. Serviços e produtos, por sua vez, oferecidos com excelência, vão levar à compra recorrente.
Nesse sentido, de nada adiantam as campanhas que procuram atacar os concorrentes —como algumas que já ficaram emblemáticas entre as gigantes dos refrigerantes Coca-Cola e Pepsi.
"A Pepsi-Cola ainda é a número 2, apesar dos constantes ataques à Coca-Cola. As grandes marcas mantêm a liderança lembrando constantemente seus clientes do que prometem entregar", diz Kotler, em entrevista à Folha.
Agora, após a revolução digital e a pandemia, o especialista defende um marketing mais humano: é preciso construir relações mais genuínas, reforçar práticas éticas e estar atento aos valores e à cultura dos consumidores. Esse é o tema do seu livro "Marketing H2H: A Jornada do Marketing Human to Human", lançado no Brasil neste ano pela editora Benvirá (além de Kotler, assinam a obra os professores alemães Waldemar Pfoertsch e Uwe Sponholz e o brasileiro Marcos Bedendo).
Para que o marketing H2H seja construído no mercado de massa, a inteligência artificial é a melhor ferramenta. "O objetivo da IA é simplificar e facilitar o processo de troca. Ela faz isso desumanizando o processo", afirma.
O especialista vai tratar de cases brasileiros no novo curso que a ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing) lança em 2025, Strategic H2H Marketing. Aos 93 anos, Kotler dará aulas ao vivo, direto dos Estados Unidos. O programa terá duração de 96 horas, divididas ao longo de um semestre, com início em fevereiro.
Como as grandes marcas podem ser relevantes em meio ao aumento da concorrência e à redução da lealdade do consumidor?
As grandes marcas sempre serão atacadas pelos segundos e terceiros concorrentes. A Pepsi-Cola ainda é a número 2, apesar dos constantes ataques à Coca-Cola. As grandes marcas mantêm a liderança lembrando constantemente seus clientes do que prometem entregar. A Coca-Cola promete felicidade aos seus consumidores! Isso é impossível de ser facilmente copiado pela Pepsi. A grande marca sobrevive observando novas tendências em sua base de clientes e na sociedade, procurando se alinhar suavemente com esses movimentos.
Para permanecer relevante em uma era de competição acirrada e lealdade do consumidor em declínio, as grandes marcas devem desenvolver pesquisas altamente sofisticadas com consumidores. Isso lhes permite acompanhar os interesses do público, que estão em constante mudança, e captar a dinâmica do mercado, ficando à frente das tendências e tomando decisões com base em informação.
Quais as prioridades para uma marca que deseja se manter líder?
Foco na inovação, oferta de experiências excepcionais ao cliente e o fomento de fortes conexões emocionais com o seu público. Esses esforços ajudam a diferenciar as grandes marcas e a reforçar suas propostas de valor únicas em um mercado saturado. Embora nenhuma marca tenha sucesso em todas as suas iniciativas, o monitoramento consistente do mercado e a disposição para se adaptar são fatores críticos. Com o tempo, os movimentos estratégicos corretos vão gerar resultados, e esse sucesso vai sustentar a liderança e a relevância da marca a longo prazo. Resiliência e adaptabilidade são essenciais para navegar nesse cenário competitivo.
Como definir o seu conceito marketing H2H (marketing de humano para humano)? A humanização das práticas de marketing pode ser um antídoto para a atenção fragmentada do consumidor?
O marketing H2H remonta ao tempo em que um cliente costumava conhecer o dono da loja, ser cumprimentado por ele, participar dessa troca de gentilezas. Isso está ausente nas compras de hoje. O consumidor caminha por um grande supermercado, mal conhece os funcionários e faz o checkout sem muito contato humano. O marketing H2H é uma tentativa de lembrar aos profissionais de marketing que muitos consumidores gostariam de um toque mais humano nas relações comerciais. É sobre criar conexões genuínas entre empresas e clientes, priorizando empatia e confiança, com uma interação mais personalizada. A ideia central é reconhecer cada cliente como um indivíduo —valorizando sua singularidade e adaptando as experiências às suas necessidades.
Essa humanização pode, de fato, combater a atenção fragmentada do consumidor. No passado, essa abordagem individualizada era algo desafiador. Mas hoje os avanços no processamento de dados, na acessibilidade e na inteligência artificial tornam possível a oferta de serviços e comunicação personalizados, mesmo em grande escala. Indústrias como telecomunicações, companhias aéreas e bancos começam a aproveitar essas tecnologias para fornecer experiências personalizadas, mesmo em um contexto de mercado de massa.
Falar sobre humanização através do uso de inteligência artificial não parece uma contradição?
O objetivo da IA é simplificar e facilitar o processo de troca. Ela faz isso desumanizando o processo. Pode, sim, parecer contraditório, mas a IA é capaz de permitir interações personalizadas, análises preditivas e resolução eficiente de problemas. Ela ajuda as marcas a entender o comportamento do consumidor, adaptando mensagens e oferecendo experiências relevantes, de acordo com as necessidades e as preferências de cada um.
Por exemplo, quando o consumidor busca o suporte, sua prioridade é resolver um problema, não necessariamente falar com um humano. Sistemas impulsionados por IA, quando projetados para melhorar as experiências dos clientes, em vez de apenas reduzir custos, podem fomentar a confiança na empresa ao agilizar soluções. Isso demonstra o potencial da IA para escalar empatia e eficiência, transformando-a em uma ferramenta de conexão em vez de mera automação.
Entregar autenticidade e sinceridade é desafiador, pois requer que as marcas alinhem ações com mensagens, priorizem a confiança e mantenham a clareza sobre as experiências que desejam oferecer. Muitas empresas falham em definir uma oferta única e genuína, focando em competir com outras. Sem essa clareza, é difícil cumprir promessas de maneira consistente ou construir uma relação autêntica. O marketing humanizado trata as pessoas como elas querem ser tratadas, respeitando sua individualidade.
Há 20 anos, a comunicação eficiente se resumia a uma boa campanha em horário nobre e a um serviço de atendimento ao cliente. Hoje a atenção do público está fragmentada, e os pontos de contato com o consumidor são inúmeros. A vida dos profissionais de marketing se tornou mais estressante?
Ao contrário do passado, a abordagem de hoje exige precisão, clareza e adaptabilidade. As campanhas em horário nobre ainda desempenham um papel, mas seu foco mudou para objetivos específicos, como construir conscientização ou anunciar grandes iniciativas de marca. Enquanto isso, as comunicações individualizadas são encarregadas de explicar ofertas, atender às necessidades dos consumidores e personalizar serviços. Essa estratégia de duas camadas torna o processo de comunicação muito mais intrincado e exige que os profissionais de marketing tenham uma visão clara do que desejam estabelecer na mente do seu público —uma clareza que muitas vezes falta. Na era do marketing de massa, campanhas amplas ainda podiam alcançar resultados, mesmo que não fossem perfeitamente direcionadas. Hoje, a precisão é essencial, e com a precisão vem a necessidade de objetivos bem definidos.
As empresas continuam buscando maximizar o lucro —o que muitas vezes envolve achatar salários, especialmente de funcionários que trabalham no atendimento ao público. Como um funcionário pode oferecer um tratamento gentil se está exausto e mal remunerado?
A questão é se a empresa está mais interessada em construir vendas de curto prazo ou de longo prazo. Em uma economia baseada em serviços, o engajamento pessoal e o atendimento de qualidade são críticos. Como afirma um princípio clássico do marketing de serviços: "Você não pode ter clientes satisfeitos sem funcionários satisfeitos". Isso é óbvio, mas muitas vezes é negligenciado. Como um funcionário mal remunerado, sobrecarregado e não reconhecido pode oferecer um serviço excepcional?
Felizmente, muitas empresas estão cada vez mais reconhecendo a conexão direta entre satisfação do funcionário e satisfação do cliente. Para alcançar isso, elas devem investir na força de trabalho, garantindo uma remuneração justa, promovendo um ambiente de apoio e oferecendo um treinamento robusto. Funcionários empoderados e motivados estão mais bem equipados para fornecer um serviço gentil e eficaz, mesmo em condições desafiadoras. O bem-estar do funcionário é não apenas uma obrigação moral mas também uma prioridade estratégica para oferecer uma experiência excepcional ao cliente.
Em um mundo cada vez mais polarizado, até que ponto as marcas devem defender posições ou tomar partido?
No Brasil, algumas empresas tiveram suas marcas boicotadas quando declararam seu voto nas eleições presidenciais de 2022.
Vamos distinguir entre causas sociais que têm alta concordância, como "diminuir a poluição" ou "economizar água", e causas mais controversas, como "controle de armas" ou "aborto". Uma empresa inteligente evitaria defender causas controversas. Em um mundo cada vez mais polarizado, as marcas devem agir com cautela ao se envolver com questões sociais ou políticas. Tomar uma posição pode fortalecer a identidade da marca e ressoar profundamente com públicos específicos, mas também corre o risco de alienar outros segmentos.
As empresas devem garantir que suas posições estejam alinhadas com seus valores centrais e seu público-alvo, manter autenticidade e consistência e estar preparadas para lidar com possíveis reações negativas ou boicotes. Também é importante notar que, embora as marcas possam apoiar causas que tenham implicações políticas, elas não precisam necessariamente adotar posturas partidárias. As marcas, como entidades, não votam, e manter a neutralidade nesse aspecto pode ajudar a evitar divisões desnecessárias. Embora acionistas, CEOs e lideranças sejam capazes de influenciar a percepção pública de uma marca, ainda é possível estabelecer um nível de separação entre posições pessoais e neutralidade corporativa.
RAIO-X
Philip Kotler
Nasceu em 1931 em Chicago (EUA). Tem doutorado em economia pelo MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), pós-doutorado em matemática pela Universidade Harvard e pós-doutorado em ciências comportamentais pela Universidade de Chicago. Em 1962, começou sua carreira como professor universitário na Kellogg School of Management e, em 1967, publicou o livro "Administração de Marketing: Análise, Planejamento e Controle". Por meio das suas obras, analisou a evolução do marketing ao longo do tempo, dividindo o assunto em fases: primeiro centrado no produto (Marketing 1.0), depois no consumidor (Marketing 2.0), nas causas (Marketing 3.0), no digital (Marketing 4.0) e no ser humano (Marketing 5.0).
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