Especialistas respondem: o brasileiro é corrupto?

Esta matéria, atualíssima, foi publicada no site do Jornal Zero Hora em fevereiro de 2015 e professores discutem o assunto corrupção em vários aspectos. Será que todo brasileiro é corrupto, portanto cúmplices de políticos que saqueiam o erário? Vale a pena a leitura.

Reportagem discute se a corrupção na política é reflexo de uma suposta malandragem inerente ao povo brasileiro. Há controvérsias.

Por: Paulo Germano (ZH)


"Operários", tela de Tarsila do Amaral: a corrupção começa no povo?
Foto: Tarsila do Amaral / Reprodução

Pergunta velha, quase um clichê retórico, mas é impossível abrir este texto sem repeti-la, então tentaremos torná-la ainda mais irritante: você, honrado leitor que abomina a corrupção, responda rápido se nunca comprou produto pirata, ou falsificou carteirinha de estudante, ou roubou TV a cabo, ou subornou o guardinha, ou furou uma fila, ou apresentou atestado falso, ou bateu ponto pelo colega.

E troco a mais, nunca aceitou? Jamais acelerou na estrada, sabendo que excederia o limite de velocidade, só porque o pardal ficou para trás? E, caso seja médico ou dentista, nunca cobrou mais caro pela consulta com recibo?

Ninguém pretende julgá-lo — ao menos por enquanto —, mas até a presidente da República recentemente sugeriu que a corrupção no governo é uma extensão da corrupção no dia a dia.

— É preciso uma nova consciência, uma nova cultura fundada em valores éticos profundos. Ela tem que nascer dentro de cada lar, dentro de cada escola, dentro da alma de cada cidadão e ir ganhando, de forma absoluta, a esfera pública, as instituições e todos os núcleos de decisões — disse Dilma Rousseff em seu discurso de diplomação.

Será verdade? Somos todos corruptos e, por tabela, culpados pela bandalheira que políticos promovem com dinheiro público?

Há controvérsias.

— Essa explicação (de que a corrupção na política é um prolongamento da corrupção no dia a dia) é a mais fácil, engraçadinha e própria do senso comum. É muito boa só para os políticos, já que a culpa recai sobre o povo — contesta Roberto Romano, professor de Filosofia e Ética Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

— Mas é inegável que a nossa classe política vem de uma sociedade que pratica trapaças diárias — rebate o sociólogo Alberto Carlos Almeida, doutor em Ciência Política e autor do best-seller A Cabeça do Brasileiro. — Os valores morais de um servidor público, eleito ou não, são forjados na sociedade em que ele cresceu.

Não há consenso, como se vê: enquanto Alberto Carlos Almeida garante que sim, a corrupção nos governos é reflexo de uma malandragem inerente à população brasileira, Roberto Romano faz o raciocínio inverso. Afirma que é o Estado corrupto, por vezes tirânico — vale lembrar que o Brasil atravessou séculos de regimes arbitrários —, quem abre caminho para as pequenas pilantragens cotidianas.

— A tese do mimetismo, da imitação, vem de Platão e Aristóteles: quando o ocupante de um cargo superior age de maneira imoral, as pessoas se sentem autorizadas a agir da mesma forma — argumenta Romano, para em seguida criticar "os dogmas e clichês das análises teóricas": — É uma generalização abusiva dizer que o brasileiro é corrupto.

Não é o que pensa a psicóloga Denise Gimenez Ramos, professora da PUC de São Paulo e doutora em Psicologia Clínica. No livro The Cultural Complex, organizado pela Universidade da Califórnia e lançado nos Estados Unidos, Denise afirma que a corrupção no Brasil é um problema endêmico: trata-se de um padrão de conduta tão arraigado no comportamento coletivo que, no frigir dos ovos, as pessoas nem percebem que estão sendo corruptas.


"A Família", de Tarsila do Amaral

Para citar um exemplo bem contemporâneo, ninguém se sente corrupto acessando ou colaborando com perfis do Twitter dedicados a burlar a Lei Seca — com a ajuda de milhares de seguidores, as páginas informam a localização das blitze aos motoristas alcoolizados.

— Não é uma coisa exclusiva de bandido ou de mau-caráter. A corrupção no Brasil é coisa de gente boa também — diz a professora e psicóloga. — É resultado do que eu chamo de complexo cultural de inferioridade. E, para entender esse complexo, precisamos voltar 500 anos na nossa História.

Voltemos, então.

Quando chegaram ao Brasil, os portugueses não tinham pretensões lá muito construtivas. Queriam mesmo era extrair as riquezas daqui — do pau-brasil ao açúcar de cana — e mandar todo o lucro para a Europa, sem se preocupar em constituir uma pátria ou investir dinheiro na Terra de Santa Cruz. Bem diferente do que ocorria nos Estados Unidos, na mesma época, onde uma multidão de famílias inglesas desembarcava com o único intuito de fundar um novo lar.

— Aqui, os europeus violentavam as índias, iam embora, e assim surgiam os primeiros miscigenados. Esses filhos bastardos eram rejeitados por suas tribos, que não os reconheciam como índios — prossegue Denise Gimenez Ramos.

Portanto, abandonados e sem chance de alcançar sucesso na vida — jamais se tornariam chefes de uma tribo, por exemplo —, os primeiros brasileiros cresceram com um profundo sentimento de inferioridade, diz a psicóloga. E a concepção da figura do pai, para eles, foi a pior possível: alguém que só aparece na hora de extrair, de retirar, de obter vantagem, e nunca para construir ou cuidar.

— Qualquer criança abandonada tem traumas sérios. E essa cultura extrativista, de retirar em vez de construir, de obter vantagem em vez de cuidar, foi se perpetuando de geração em geração, tanto na política quanto no dia a dia da sociedade — interpreta Denise. — Nosso complexo de inferioridade é evidente até hoje: não conheço no mundo outra nação com autoestima tão baixa. Vivemos dizendo que o Brasil é uma porcaria. O brasileiro respeita as leis quando está no Exterior, mas desrespeita aqui, porque acha o seu país uma porcaria.

Aí entra outra questão. Por que o brasileiro acha o Brasil tão horrível?

— Porque nossas instituições ainda não funcionam bem — responde Fernando Filgueiras, professor de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais e autor do livro Corrupção, Democracia e Legitimidade. — Não concordo com a tese de que a natureza pessoal do brasileiro seja corrupta. Em todos os lugares do mundo, a percepção de corrupção é menor quando as instituições funcionam direito.

Ou seja, para conviver com instituições que funcionam mal, a malandragem — ou o tal jeitinho brasileiro — é uma boa válvula de escape. Vamos a um exemplo prático.

— Você tem um filho doente esperando há dois anos por uma cirurgia no SUS. Aí, um servidor lhe oferece um furo na fila em troca de dinheiro. Você não pensa em pagar? — provoca o sociólogo Ronaldo Helal, professor de Comunicação e Cultura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).


"Emigrantes III", de Lasar Segall

Tanto Helal quanto Fernando Filgueiras ressaltam que o Brasil apresenta avanços inegáveis desde a redemocratização. Mas, justamente por convivermos há apenas três décadas com a democracia, é meio injusto nos compararmos a países como a Suécia ou o Canadá — onde, vale lembrar, também existe gente corrupta, com a diferença de que as brechas para a corrupção progredir são menores devido à maturidade das instituições.

— Uma prova de que o Brasil já melhorou é que, há 30 ou 40 anos, para se conseguir a emissão de um passaporte ou qualquer documento em tempo razoável, era imprescindível contratar um despachante. O despachante tinha os contatos certos, conhecia os atalhos: em resumo, era um sujeito pago para furar a fila — recorda o sociólogo Ronaldo Helal. — Hoje, com a burocracia reduzida, com as facilidades da internet, com datas marcadas para retirar os documentos, não é mais preciso recorrer a essa estratégia. Porque a instituição funciona.

Não deixa de ser, então, um desdobramento do que o filósofo Roberto Romano defendeu no início do texto: "É o Estado tirânico quem abre caminho para as pilantragens cotidianas". Se o Estado funciona, se as instituições funcionam, não há por que trapacear.

Só que o conceito de "instituição" pode ser mais abrangente, lembra Clóvis de Barros Filho, professor da Universidade de São Paulo (USP) e coautor do livro Ética e Vergonha na Cara. Qualquer dicionário define o termo como um "complexo integrado por ideias, relações inter-humanas e padrões de comportamento organizados em torno de um interesse socialmente reconhecido". Traduzindo: instituição são as normas de convívio social.

— Em Genebra (na Suíça), por exemplo, as bancas de revistas passam o dia todo sem funcionários. Você pega o seu jornal, deixa o dinheiro lá e vai embora — relata Clóvis de Barros Filho. — Em Estocolmo (na Suécia), Oslo (na Noruega) e Copenhague (na Dinamarca), não há cobradores em ônibus e trens. Pagar a passagem é uma escolha sua. Mas todos pagam.

O professor diz que as escolas brasileiras, tanto as públicas quanto as privadas, estão longe de formar cidadãos com esse tipo de consciência. Porque a cidadania e a convivência em sociedade são muito pouco debatidas no colégio — na prática, elas nem existem nos programas curriculares.

Um sintoma desse atraso, afirma Clóvis, é a nova moda de instalar câmeras em salas de aula, com a possibilidade de os pais monitorarem os filhos pela internet.

— O recado para os alunos é: comporte-se, porque você está sendo filmado. Ou, em outras palavras, você só deve se comportar porque há uma instância fiscalizadora o acompanhando. Assim, as escolas perdem uma extraordinária oportunidade de passar o recado inverso, que seria: o seu bom comportamento jamais pode depender da fiscalização ou do medo de ser flagrado; deve depender dos princípios morais que você mesmo vai construir.

No livro A Cabeça do Brasileiro, em que o sociólogo Alberto Carlos Almeida apresenta uma pesquisa com 2,6 mil entrevistados, a conclusão final é taxativa: quanto mais baixa a escolaridade, maior é a tolerância do indivíduo com trapaças do dia a dia.

Almeida, portanto, é um entusiasta da educação como gatilho para propagar valores éticos na sociedade. E, ao contrário do que se possa imaginar, ele se mostra bem otimista:

— A educação no Brasil tem falhas graves, precisa melhorar, mas nunca tivemos tanta gente com ensino formal completo como agora. A universalização do Ensino Fundamental virou uma realidade, o Ensino Médio avança aos poucos, houve uma explosão de vagas universitárias. Não tenho dúvida de que os protestos de 2013 já foram um reflexo dessa evolução no nível escolar.


"Morro da Favela", de Tarsila do Amaral

O cientista político Fernando Filgueiras faz coro. É notório, na avaliação dele, que boa parte da população brasileira — em especial os jovens — passou a debater mais a corrupção e a participar da discussão política.

— Não é ruim que a corrupção tenha se tornado um problema público, percebido por todos. Isso só ocorreu porque, com a autonomia das instituições democráticas, do Ministério Público ao Congresso, da imprensa à Polícia Federal, os escândalos são investigados e descobertos.

Aliás, falando em escândalos, pelo menos em um ponto todos os entrevistados desta reportagem concordam.

— É importante diferenciar a corrupção endêmica, presente no dia a dia, da corrupção do mal — ressalta a psicóloga Denise Gimenez Ramos.

— Não se pode afirmar que um motorista que excede o limite de velocidade, ou um médico que cobra mais caro pela consulta com recibo, apoiaria uma fraude no tesouro público — pondera o sociólogo Ronaldo Helal.

— Até porque são delitos de natureza distintas. Quando a corrupção envolve o patrimônio público, ou seja, o interesse de toda a sociedade, a gravidade é muito maior — completa o professor de Ética Clóvis de Barros Filho.

Sendo assim, caso seja você um político bandidão lendo esta reportagem, que fique claro: não tem desculpa.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Em novo caso de nudez, corredora sai pelada em Porto Alegre

'Chocante é o apoio à tortura de quem furta chocolate', diz advogado que acompanha jovem chicoteado

Foragido que fez cirurgia e mudou de identidade é preso comprando casa na praia