Movimento Armorial, 50 anos do convite para que o Brasil mire as suas entranhas

Suassuna liderou ideias para estimular a criação de uma arte erudita a partir da cultura popular. Cinco décadas depois, matriz ainda influencia a produção cultural de seus herdeiros

Ilustração sobre o movimento Armorial do artista Flavio Tavares.
ACERVO PESSOAL

El País - São Paulo 

No início da noite do dia 18 de outubro de 1970, um grupo de artistas de distintas linguagens se reunia no pátio da igreja de São Pedro dos Clérigos, no centro de Recife. Inflados pelo escritor e dramaturgo Ariano Suassuna, preparavam-se para apresentar obras que incluam artes plásticas, dança, um concerto. Estavam unidos sob uma mesma premissa: a de criar uma arte erudita brasileira a partir de elementos da cultura popular. O movimento que nascia oficialmente naquele dia exaltava o armorial. Seu batismo com essa palavra, sinônimo de heráldico, se ancorava simbolicamente nos brasões e signos presentes dos estandartes do maracatu às escolas de samba. Os armoriais queriam fazer o Brasil olhar para si mesmo. Estimulavam que os artistas evitassem escolher entre as avenidas do erudito e do popular para se aventurar, com técnica, pelas ruelas e morros que as separavam. Uma matriz que, 50 anos depois, ainda influencia a produção cultural de seus herdeiros.


O nome mais forte do movimento ainda é o de seu idealizador. Ariano Suassuna provavelmente não imaginava a força que teria quando transformou sua ideia em um programa de extensão da universidade. Queria dar visibilidade para a cultura popular que sempre lhe chegou muito viva no sertão da Paraíba, onde cresceu. Quinze anos antes de ler o manifesto armorial, já havia publicado sua obra mais popular e até hoje aclamada, criada já sob as ideias que alicerçam seu movimento. Suassuna recorreu a três folhetos de cordéis para escrever O Auto da Compadecida, seguindo as técnicas da dramaturgia. Uma obra armorial que antecede o movimento e que virou filme e minissérie. Muitos anos depois, ele utilizou justamente o cordel como uma obra capaz de sintetizar a cultura armorial.

É uma cena clássica no interior do Nordeste a venda desses folhetos. Acontece feito um espetáculo de teatro. Os cordelistas, muitos deles também cantadores, declamam seus versos com o auxílio da viola. Contam histórias que vão de príncipes e reinos medievais a animais encantados e lendas do sertão. Exibem na capa de seus folhetos geralmente a xilogravura, uma pintura chapada cujo desenho foi talhado na madeira. Os poetas populares encenam histórias e terminam de declamar seus versos antes do fim. Se você quiser saber o final, compre o folheto.

O movimento armorial preserva todos esses elementos. Passeia pelas mais diversas linguagens ―artes plásticas, música, teatro, literatura, dança. E bebe muito do realismo mágico do sertão, embora (diferentemente do que muitos possam pensar) não se limite ao ambiente rural e ao sertão de Suassuna. “Meu recorte armorial é mais um recorte urbano que propriamente rural ou sertanejo. O sertão para mim é uma paisagem longínqua, ela não faz parte das minhas vísceras culturais”, conta o multiartista Antônio Nóbrega, um dos principais herdeiros do movimento.

Antonio Nóbrega na Aula espetáculo Mátria.
WALTER CARVALHO / ARQUIVO PESSOAL

Nóbrega não estava presente naquele dia da leitura do manifesto na igreja de São Pedro. Apenas no ano seguinte foi convidado por Suassuna a integrar o Quinteto Armorial. Expoente do movimento, era um grupo de músicos que criavam uma nova sonoridade a partir de instrumentos do cancioneiro popular, como pífanos, rabecas e marimbaus (um berimbau invertido). Filho da classe média pernambucana, Nóbrega cresceu na capital Recife, onde estudou música na Escola de Belas Artes. Ele define sua relação com o movimento como “uma abrição de portas". Foi a partir daí que passou a mergulhar no universo popular. Subia os morros e altos do Recife para conhecer de perto manifestações como caboclinho, maracatu e cavalo marinho. “Esses artistas começaram a me atrair, com suas danças, formas de contar, tambores. Assimilei muita coisa dos brincantes e dos poetas. E fui então referenciado nesse universo”, conta.

Um consulado da cultura popular brasileira

Nóbrega deixou o Quinteto Armorial quatro LPs depois para seguir seus espetáculos solo. Ariano Suassuna ―que atuava como uma espécie de mestre de cerimônias do grupo, explicando os gêneros populares e os instrumentos populares a cada apresentação continuou próximo a ele mesmo depois que mudou para São Paulo. Chamava o Instituto Brincante, espaço cultural que Nóbrega criou na capital paulista, de “consulado do Movimento Armorial”. Nóbrega chegou em São Paulo tomado pelo espírito da dança. Trazia consigo uma espécie de corpo popular brasileiro, forjado nas andanças pelo Nordeste. “Hoje eu considero o Brincante mais brasileiro do que um consulado nordestino. Um local onde se dá cursos, oficinas, ações levando em conta a cultura popular do Brasil, que ainda não é suficientemente compreendida. O Brincante tem essa função de trazer essa notícia”, diz o músico.

Nóbrega já tem mais tempo de São Paulo do que de Recife e, embora diga manter o sentimento “nativista pernambucano”, ampliou a espinha dorsal do movimento que, sob a visão de fora, ficou muito atrelado ao Nordeste e à forte figura de Suassuna. “O Movimento Armorial não chegou, em termos de conhecimento, aos meios da Semana de Arte Moderna de 1922 nem ao movimento tropicalista, que é um pouco anterior. Foi um movimento muito identificado com a pessoa de Ariano, que tinha esse traço de um nordestino voluntarioso, guerreiro", afirma.

O próprio Quinteto se baseava em instrumentos típicos nordestinos. "Tudo isso acho que ajudou a criar esse entendimento de um movimento que não transcendesse os limites do Nordeste, embora conceitualmente, sim, transcendesse”, explica. Cinco décadas depois do movimento, Nóbrega ainda segue sua carreira sobre o alicerce de criar uma cultura brasileira popular, que mescla as influências ocidentais e europeias (ele já não gosta do termo erudito) com as influências indígenas, africanas e ancestrais (a base da cultura popular). Sozinha, nenhuma dessas duas pontas, para ele, representa a cultura brasileira. “O país se encontra consigo mesmo quando esses dois universos deixam de estar apartados e se reúnem”, resume.

Ele acredita que há uma unidade cultural brasileira e chama atenção para o fato de que o mesmo teatro popular se repita em diferentes regiões, como o boi-bumbá do Norte e o boi de mamão de Santa Catarina. “O mundo cultural popular tem uma unidade muito grande. Sou um herdeiro das ideias e do pensamento de criar uma arte brasileira através do mundo cultural popular. O que Ariano me mostrou e gostaria que o Brasil visse é que esse mundo cultural é um achado para nós criadores”, emenda.
Uma extensão do movimento no Rio de Janeiro

É sob essa perspectiva que nasce o grupo Gesta, bem distante do Nordeste, no Rio de Janeiro. Um grupo de músicos ligados à academia e entusiastas do Movimento Armorial começou a compor sob essa influência. Adotou instrumentos tradicionais como a viola, o pífano e o marimbau para levar na sua obra esse universo musical. “Nós fomos atraídos nos anos 1990 pelo encantamento com o universo da cultura popular. Nesse percurso, a gente acabou estabelecendo contato com Suassuna. E foi ele que nos reconheceu como uma extensão do movimento armorial”, conta o músico Daniel Bitter.

Daniel Bitter, do grupo Gesta.
ARQUIVO PESSOAL

O manifesto armorial deixou como importante legado abrir portas para que culturas populares de diferentes linguagens começassem a deixar a marginalização. O cordel, a xilogravura, as violas ingressaram na academia e nos espaços institucionalizados da cultura, ainda que não tenham eliminado as críticas à invisibilidade dos artistas tradicionais populares. E perdura a preocupação com a identidade cultural brasileira e dar espaço à infinitude de mestres que desenvolvem sua arte nos rincões do Brasil.
O desafio de olhar o “Brasil real”

J. Borges, mestre do cordel e da xilogravura e íntimo amigo de Suassuna — que o considerava o melhor gravador popular do país — é um dos que ainda hoje, no auge de seus 84 anos vivencia a cada dia, em seu atelier, os princípios da arte armorial. Em suas famosas xilogravuras, ele levou para todo o mundo de São Paulo ao Japão, os temas da cultura sertaneja que vivencia desde pequeno: os retirantes, cortadores de cana, matutos, boiadeiros, os festejos populares e a mistura de Deus e dos santos com os reles mortais. “Nosso objetivo sempre foi conseguir nos alimentar com nosso trabalho e, ao mesmo tempo, manter viva a cultura brasileira”, diz o artista, ao telefone, de Bezerros (PE).

Xilogravura 'A chegada da prostituta no céu', de J. Borges (1976).

J. Borges lamenta que, depois da morte do amigo, que faleceu em 2014, aos 87 anos, o armorialismo tenha ficado “parado”. “Hoje em dia, é raro um cabra parar para prestigiar a arte brasileira”, lamenta. Mas ele próprio, apesar de ser considerado um expoente vivo do Armorial, não se sente muito conectado com o movimento. “No tempo de Ariano, eu fazia algumas coisas, mas a verdade é que cordel nunca conheceu o Armorial. O Armorial foi para as academias, para a elite, e o cordel é a linguagem do popular. Eu sempre soube só falar para o povo”, afirma, categórico.

“Ariano dizia que a cultura popular era a cultura do Brasil real. E ele queria que olhassem para o Brasil real. Queria construir essas pontes entre o erudito e o popular e ele não fazia distinção de hierarquia entre elas”, diz o pesquisador e professor da Universidade Federal de Pernambuco, Carlos Newton Júnior. Ex-aluno e amigo de Ariano Suassuna ao longo de quase três décadas, ele diz que o movimento ainda segue vivo. Seja com artistas que se autoproclamam armoriais, como por exemplo a ceramista cearense Socorro Torquato, seja nas influências deixadas por exemplo no Ballet popular do Recife que funde a técnica da dança clássica ao gestual das danças populares.

Newton Júnior ainda refuta que o movimento tenha se limitado geograficamente ao Nordeste. “O maior evento de comemoração dos 50 anos é o Interculturalidades da Universidade Federal Fluminense", argumenta. Durante duas semanas, o evento promoveu rodas de debate e apresentações de obras armoriais por transmissões ao vivo na internet. A programação, encerrada neste domingo (18), segue disponível pelo Youtube. "Ariano não falava em arte popular nordestina, mas em arte popular brasileira. Ele dizia que os artistas das várias regiões deveriam fazer o que se fazia sob o Nordeste. Era uma visão bem generosa para que o Brasil conhecesse a si mesmo”, finaliza Newton Júnior.

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