'Impossível esquecer', diz mãe de uma das vítimas de influenciadoras condenadas por darem banana e macaco de pelúcia para crianças negras em São Gonçalo

Kerollen Vitoria Cunha Ferreira e a filha, Nancy Gonçalves Cunha Ferreira foram condenadas a 12 anos de prisão em regime fechado por injúria racial

Por Madson Gama — Rio de Janeiro
O Globo

A mãe, a criança vítima e suas irmãs falaram sobre o episódio 
Foto: Madson Gama

A condenação por injúria racial, nesta terça-feira (19), das influenciadoras digitais que, em 2023, publicaram vídeos entregando uma banana e um macaco de pelúcia para duas crianças negras, de 9 e 10 anos, até provocou uma sensação de Justiça nas famílias das vítimas, mas a tristeza profunda ao lembrar do episódio ainda é uma marca que, dificilmente, será esquecida. O GLOBO conversou, nesta tarde, com a mãe da menina que aparece em um dos vídeos, e ela não conteve as lágrimas ao comentar sobre a exposição e a violência que a filha sofreu.

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— Eu soube do vídeo através de um parente meu, que viu na TV e nas redes sociais, e falou que minha filha estava na mídia. Eu nem sabia o que era racismo. Quando entendi o que estava acontecendo, foi um baque para mim. Me senti péssima e chorei muito, porque a situação mexeu muito com meus filhos e comigo. Quando as crianças iam para escola, os colegas zoavam, e na rua também. Eles ficaram mais de três semanas sem querer ir para o colégio e nem queria mais ir para a rua brincar. O mais angustiante foi ver meus filhos tristes. Apesar de eu ser pobre, eles nunca tinham passado por isso. Como pode uma mulher fazer isso como uma criança? — questiona a mãe, com os olhos marejados e a tristeza estampado no rosto. — Hoje, eu estou um pouco mais calma, porque a Justiça está sendo feita, mas não dá para esquecer o que minha filha sofreu.

Moradora do Jardim Catarina, em São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio, ela é mãe solo de oito crianças, sendo cinco meninas e três meninos, e leva uma vida humilde como catadora de materiais recicláveis — ela vai para a rua em busca do resíduos pela manhã, enquanto os filhos estão na escola. Vive com o lucro dos itens — há dias em que não consegue mais de R$ 30 — e com a ajuda de vizinhos, conta. Ela já recebeu o Bolsa Família, mas o benefício foi cortado em 2020. Desde então, tenta reaver o direito a participar do programa.

— Quem ajuda a gente são as pessoas do bairro. Quando chega Natal, é muito triste ver meus filhos sem presente, sem nada —lamenta.

As irmãos estavam juntas quando foram abordadas pelas influenciadoras em 2023 
 Foto: Madson Gama

Suas filhas estavam indo comprar pão quando foram abordadas pelas influenciadoras Kerollen Vitoria Cunha Ferreira e a filha, Nancy Gonçalves Cunha Ferreira. Elas, que também moram no Jardim Catarina, convidaram as crianças para participar de um vídeo, em que ofereciam R$ 5 ou uma caixa. Uma das crianças, de 10 anos, aceitou participar, e, durante a gravação, optou pela caixa, pensando se tratar de uma boneca, brinquedo que ama. Quando abriu, porém, lá estava um macaco de pelúcia. Após a repercussão do vídeo, a pequena passou a sofrer bullying na escola.

— Em vez de me chamar pelo meu nome, minhas colegas me chamavam de 'macaco'. Aí, eu ficava triste, ia correndo para o banheiro e ficava sentada chorando — conta a criança, aluna do 4º ano e que sonha se formar em Direito. — Eu fico brincando de advogada com minha irmã.

Ao ver a angústia da vítima, uma das irmãs, de 12 anos, que é aluna 5º ano na mesma escola, sofreu junto.

— As pessoas na escola diziam que minha irmã se parecia com o macaco de pelúcia que a mulher deu. Ela se trancava no banheiro da escola, chorava de soluçar e não saía mais. Eu, então, saía da minha sala de aula e ia procurar a diretora para resolver a situação. Minha irmã acabava saindo do banheiro, mas não conseguia voltar para a sala de aula. Simplesmente, ficava com medo. O tempo foi passando e, hoje, ela já vai normalmente. Eu ficava muito triste pela minha irmã. Não gostava do que eles faziam, mas entregava nas mãos de Deus. Hoje, quando eu lembro, ainda me dá vontade de chorar, porque é muito difícil — relata, indo às lágrimas.

Bem articulada e comunicativa, essa irmã gosta de escrever. Na escola, a matéria preferida é produção textual, mas diz que quer se tornar veterinária:

— Gosto muito de animalzinhos. Lá em casa, temos muitos bichinhos: cachorro, gato, coelho...E eu ajudo a cuidar deles.

Já uma outra irmã, gêmea da vítima, que também conversou com O GLOBO, pretende se dedicar ao magistério.

— Quero ser professora e dar aula para os pequenos — revela. — Gosto muito de brincar de escolinha.

Kerollen e Nancy divulgavam conteúdos no Instagram, no TikTok e no Youtube e reuniam mais de 13 milhões de seguidores. Um menino negro foi a outra vítima. Em um dos vídeos, Kerollen conversava com um menino negro em uma calçada e perguntava se ele gostaria de receber um presente ou R$ 10. Ele escolhe o presente, achando que seria uma bola de futebol, mas, ao perceber se tratar de uma banana, responde “só isso?”. Completa dizendo que não gostou e deixou o vídeo da influenciadora.

As influenciadoras foram condenadas a 12 anos de prisão em regime fechado por injúria racial. Elas estão soltas e poderão recorrer da sentença em liberdade. Além da prisão, Nancy e Kerollen foram condenadas também a pagar de R$ 20 mil de indenização para cada uma das vítimas.

— O que elas praticaram foi humilhação pública contra crianças negras, transformadas em alvo de estereótipos racistas. O judiciário foi claro: isso é crime grave e a resposta precisa ser proporcional. Muitas pessoas questionam se essa pena de 12 anos não seria muito alta, mas, nesse caso, trata-se de um marco histórico na luta contra o racismo estrutural — diz o advogado Marcos Moraes, que defende as vítimas do caso.

A defesa é composta ainda por Flávio Biolchini, Felipe Braga e Alexandre Dumans. Os quatro estão à frente do Escritório Modelo Nilo Batista (SACERJ), que atuam de forma voluntária em casos envolvendo vítimas em situação de vulnerabilidade social.

— Aquela foi uma cena humilhante, degradante e que merecia uma condenação por aquilo — define Alexandre Dumans. — Essa condenação é um pingo no oceano, mas é importante para dar exemplo às pessoas. Por outro lado, atua na consequência. A única coisa que soluciona a causa dessa questão é a educação.

A sentença

Responsável pela sentença, a juíza Simone de Faria Feraz, da 1ª Vara Criminal da Comarca de São Gonçalo, município da Região Metropolitana do Rio, afirmou que os atos cometidos por Nancy e Kerollen correspondem a uma "monstruosidade".

Segundo a magistrada, as influenciadoras não postaram “inocente brincadeirinha”. "Não, as rés criaram conteúdo, ridicularizaram as crianças. Pouco importa se no momento em que (...) recebe uma banana e (...) um macaco de pelúcia não tivessem, naquele momento, repito, a perfeita consciência da chibata em seus pequenos corpos. Não, o crime se protrai no tempo e ganha contornos de verdadeira monstruosidade quando publicam, sem dó e respeito, suas reações imaturas e inocentes em rede social. Destaco que o momento em que se dá a consumação é justamente após as postagens, com a extrema divulgação, nesse momento é que após cientes das ofensas as crianças são vitimadas".

Em depoimento, Nancy e Kerollen alegaram que ajudavam as famílias das duas crianças e afirmaram que seguiram uma "trend" de redes sociais. As duas negaram serem racistas e disseram não saber o que é racismo recreativo.

Na sentença, a juíza destacou que "nada mais absurdo querer fazer crer que nesses dias de conhecimento imediato, fácil acesso, as rés não soubessem o que é racismo. Não viviam as rés em tribo isolada, sem rede social, longe de tudo e de todos, absortas em si. Não e não! Faziam seu ganha pão, nada módico, é bom de ver, justamente em publicações em rede mundial de computadores".

Simone de Faria Feraz afirmou também que "o que fizeram as rés, em íntimo de vontades, foi sangrar, mais uma vez, em açoites os nascidos de África. (...) Ao fazer jocoso o anseio de crianças entregando-lhes banana ou macaquinho de pelúcia, animalizando-as para além do humano, riram de suas opções cegas, em verdade sem escolha. Pior, ao afirmarem que nada fizeram, que ao outro cabia a culpa da disseminação do ódio, lavaram as mãos, brancas, como senhores de engenho antes de cada taça de vinho. E, é nessa esteira de ódio e dor que não há cabida para minorar os efeitos de tamanho racismo".

O que é racismo recreativo

O termo racismo recreativo foi criado pelo pesquisador Adilson Moreira, em livro de mesmo nome. Nele, Moreira explica que a expressão veio como uma forma de combate a práticas que muitas vezes são consideradas brincadeiras inofensivas, mas que na verdade são uma forma de agressão a pessoas negras. Fabiano Machado da Rosa, advogado especialista em compliance antidiscriminatório, explica que o racismo recreativo é velado pelo "humor".

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