Atacar o espaço

É o que dizem agora quando um jogador apenas ataca. O que queriam? Que ele atacasse o tempo?

Folha de São Paulo

Veterano torcedor de futebol, se bem que há muito tenha trocado a arquibancada pelo sofá, algo passou a me fascinar além dos passes, dribles e gols. É a apropriação periódica de termos e expressões que não se usavam e que, de uma rodada para outra, assomam o vocabulário dos narradores e comentaristas. E, quando adotados por um, passam a ser usados por todos. Em pouco tempo, essa nova língua é assimilada pelos técnicos, jogadores, gandulas e, de taco na mão e palito na boca, pelo torcedor no botequim.

Gonzalo Plata, do Flamengo, durante partida das oitavas de final da Copa do Mundo de Clubes, contra o Bayern de Munique - Wu Xiaoling - 30.jun.25/Xinhua

Já me disseram que não é assim, mas o contrário —que são os treinadores que inventam as expressões e os narradores apenas os seguem. Como diria o filólogo rubro-negro Antonio Houaiss, reservo-me o direito de discrepar. Nenhum técnico cunhou mais expressões que o inolvidável Tite —"treinabilidade", "externos desequilibrantes", "sinapses do último terço"— e nunca vi um narrador ou comentarista falar essas idiotices. E temos os 11 milhões de treinadores portugueses hoje no Brasil, que continuam a falar como em Lisboa —temporada é "época", primeiro tempo é "primeira parte", jogador descansado é "jogador fresco" —e ninguém adotou isso.

Há tempos, referi-me a sandices como "camisa pesada" (não de suor, mas de títulos), "entre linhas" (a velha intermediária) e "pressão baixa" (retranca). Quem inventou? O simples ato de atacar tornou-se "atacar o espaço" —querem que o jogador ataque o tempo? E os clubes não moram mais em suas sedes, mas em "prateleiras", como bules e açucareiros

Além disso, nem sempre a novidade prima pela lógica. O "passe vertical" não será, na verdade, horizontal? "Respeitar o minuto de silêncio" será respeitar a pessoa que morreu ou o próprio minuto de silêncio? Ao dizer que o juiz "prometeu cinco minutos de acréscimo", supõe-se que ele poderá não cumprir a promessa?

Num futebol em que se disputa a bola em crescente e atordoante velocidade, como será "jogar parado" ou, mais impróprio ainda, "jogar sem bola"? E haja tinta para passar nas traves.


Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues, é membro da Academia Brasileira de Letras

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