Refrigerante e política: Pepsi, Coca-Cola e segregação racial

Empresas são movidas por interesses, seus operadores tem faro oportunista e onde há cheiro de lucro, lá estão os sabujos para lamber o butim.

Publicidade da Pepsi

Luis Gustavo Reis*, Pragmatismo Político

O título do artigo pode soar estranho à primeira vista, até porque qual seria a relação de uma bebida açucarada com um sistema político? A propósito, de qual segregação racial estamos falando? Um pouco mais de paciência, caro leitor, já iremos colocar os pingos nos is, ou melhor, fechar as garrafas com suas respectivas tampas.

Muitos já tomaram ou tomam refrigerante com regularidade. De variadas cores e sabores, o gaseificado é um dos produtos mais consumidos do mundo. Calcula-se que a indústria de refrigerantes bateu recordes em 2017, com faturamentos que ultrapassam 61 bilhões de dólares. Cerca de 28% dessa quantia é originada da bebida mais vendida, a Coca-Cola. O segundo lugar no ranking, ostentando 10%, é ocupado pela arquirrival Pepsi.

A relação do ser humano com águas gasosas é antiga, remonta ao século IV a.C. Nesse período, Hipócrates, considerado o pai da medicina, recomendava aos gregos banhos regulares em águas minerais gasosas para curar determinadas moléstias. Encontradas em diferentes regiões da Grécia antiga, os enfermos não tinham dificuldades em esbaldar-se em alguma fonte que cruzassem pelo caminho. A prescrição, porém, era circunscrita ao banho e não era indicada ingestão.

Somente no alvorecer do século XVI que a água gasosa passou a ser ingerida e popularizada em diferentes regiões da Europa. Devido à grande demanda pelo líquido, que, à princípio, era extraído de fontes naturais do vilarejo de Spa, na Bélgica, diversos alquimistas passaram a pesquisar formas de recriar o produto artificialmente.

Por volta de 1773, depois de sucessivas tentativas, estudiosos desenvolveram uma bomba que fixava gás carbônico à água. Daí até a industrialização do produto foi um salto, sobretudo porque coincidiu com a Revolução Industrial que avançava a passos largos. Passado o tempo, algumas pessoas acrescentaram açúcar, raízes e frutos à água, tais como gengibre e limão.

O invento atravessou o oceano e chegou aos EUA, onde muitas farmácias ostentavam em seus balcões uma bomba que gaseificava a água instantaneamente, deixando ao gosto do freguês o sabor que desejava provar. A bebida que fazia mais sucesso era a “soda”, como ficou conhecida a mistura com limão.

Refrigerante e medicina, portanto, sempre andaram juntos. Como o produto foi desenvolvido por químicos e tinha finalidades medicinais, sua comercialização ocorria principalmente em farmácias. E foi numa dessas boticas, nos últimos anos do século XIX, que surgiu a Coca-Cola, o refrigerante mais popular do planeta.

Símbolo da harmonia familiar e da fraternidade universal, conforme versam seus comerciais desde tempos remotos, a Coca-Cola surgiu num país segregado, cindido por leis racistas. A abolição da escravidão nos Estados Unidos, em 1863, não foi suficiente para a população negra ser integrada à sociedade em condições de igualdade. A ideia de superioridade do homem branco – defendida por diversos cientistas do século XIX – deu suporte para que, em diversos estados norte-americanos, fossem aprovadas leis de segregação racial. Tais leis determinavam onde os negros deveriam morar, estudar, trabalhar e os lugares que poderiam frequentar. Havia segregação nos meios de transporte, espaços públicos e muitos estados proibiam o casamento entre negros e brancos. A indústria de refrigerantes também foi afetada por essa atmosfera e calculou precisamente de qual lado estaria e os lucros que iria auferir.

Não é novidade que a cocaína era um dos ingredientes da Coca-Cola (daí o nome “Coca”, inclusive), item que já foi até objeto de chacota em comerciais de seus concorrentes. Em 1899, a Coca saiu das farmácias, passou a ser vendida em garrafas de vidro e já não era mais uma bebida medicinal, mas um produto “refrescante”.
Mas a história polêmica e pouco conhecida ocorreu quando os negros começaram a consumir o refrigerante, no começo do século XX, e foram sistematicamente hostilizados pelos brancos. Protestos foram organizados, cartas, reclamações e ofícios enchiam o serviço postal de membros do governo e diretores da Coca para que proibissem imediatamente a venda e a distribuição do produto em redutos da comunidade negra estadunidense. Segundo os reclamantes, ao consumirem Coca-Cola, os negros poderiam viciar na cocaína contida no refrigerante e passar a aterrorizar, espancar e matar a população branca. Os jornais de Atlanta alarmavam, por exemplo, que assaltos aumentariam, sequestros seriam frequentes e mulheres brancas sofreriam estupros cotidianos.

Ante ao pandemônio, a Coca-Cola retirou a cocaína da fórmula e passou a usar folhas de coca já processadas – sem a droga inserida – e inseriu mais açúcar e cafeína. Além disso, proibiu a venda do produto em estabelecimentos frequentados por negros. Os marqueteiros da empresa, fieis defensores das leis segregacionistas, aproveitaram o ensejo e criaram campanhas publicitárias para enaltecer a população branca e proibir o consumo pelos negros.

Na máquina de refrigerantes da Coca-Cola está escrito: “Beba Coca-Cola. Apenas clientes brancos”.

Na máquina de refrigerantes da Coca-Cola está escrito: 
“Beba Coca-Cola. Apenas clientes brancos”.

Movida por interesses financeiros, aproveitando a abertura de um mercado promissor refutado pela concorrente, a Pepsi-Cola, que ainda engatinhava em suas atividades, e apostava num refrigerante mais adocicado, vendido em vasilhames maiores pelo mesmo preço, intensificou sua publicidade e passou a distribuir fartamente a mercadoria em comunidades negras.

Entre 1940 e 1950, a Pepsi adotou uma nova estratégia de marketing: formou uma equipe de profissionais negros, cujo objetivo era criar estratégias que atraíssem e estimulassem o consumo dos afro-estadunidenses. O programa ficou conhecido como “mercado negro”.

Vendedores negros, todos eles uniformizados com as cores e o distintivo da empresa, passaram a perambular pelas ruas do chamado Cinturão Negro do Sul (Black Belt) e em áreas urbanas do Norte do país onde se concentrava a população afro para oferecer o refrigerante.

Além disso, modelos negras perfilavam nas propagandas; mostruários personalizados e cartazes eram fixados em lojas frequentadas por negros. Até mesmo o famoso compositor de Jazz, Duke Ellington, e o diplomata, mais tarde Prêmio Nobel, Ralph Bunche, ambos negros, foram contratados como porta-vozes da empresa.

Propaganda da Pepsi com modelos negros, 1962.

A campanha era tão feroz, que funcionários da Pepsi passaram a divulgar mensagens de cunho racista proferidas por Robert W. Woodruff, o então presidente da Coca-Cola.

O resultado da empreitada foi exitoso, pois muitas pessoas passaram a associar a Pepsi aos negros e o consumo do refrigerante disparou.

Durante a década de 1950, as vendas da Pepsi aumentaram vertiginosamente, acabando por ultrapassar a Coca-Cola na comunidade negra com uma margem de três para um. Anos mais tarde, a estratégia da empresa seria conhecida como “publicidade de nicho”, uma abordagem para criar um lugar distinto no mercado – técnica usada hoje por diversas empresas.

A lua de mel entre a Pepsi e os negros tinha prazo de validade. Temendo perder consumidores brancos, a empresa decide suspender o programa e passa a investir numa imagem moderna, descolada e ligada ao público jovem, valorizando a integração e diversidade das pessoas que participavam de suas campanhas.

Tempos mais tarde, sem muito alarde, a Coca passa a vender seu produto nas comunidades negras. Num esforço para desassociar a imagem racista do passado, começa a apoiar organizações estadunidenses que promovem a valorização do negro, entre elas Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês), fiel defensora da multinacional e uma das maiores entusiastas de seus programas sociais.

No ano 2000, após funcionários denunciarem racismo no interior da empresa, a Coca fechou um acordo judicial no valor de US$ 156 milhões de dólares e doou US$ 50 milhões para a Fundação Coca-Cola apoiar programas comunitários, vários deles em vigor no Brasil.

Atualmente, não há divisão entre os fabricantes de refrigerante pelo critério racial. Negros estadunidenses, inclusive os que moram no Sul, figuram entre os maiores consumidores de Coca-Cola do país. A maior parte deles, vale destacar, não conhece ou pouco se importa sobre a relação da marca de refrigerante com a segregação racial.

Resgatar essa história não tem o objetivo demonizar a Coca-Cola e valorizar a Pepsi, mas sim de servir de reflexão. Empresas são movidas por interesses, seus operadores tem faro oportunista e onde há cheiro de lucro, lá estão os sabujos para lamber o butim.

*Luis Gustavo Reis é professor e editor de livros didáticos.

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