Brasil, 200 anos de Casa Grande


Sérgio Abranches criou formulações de ciência política que explicaram o presidencialismo de coalizão e a chegada de homens como Bolsonaro ao poder. Agora, ele está interessado em compreender como a mentalidade patriarcal e escravista da casa grande nos define

Por Flávia Tavares
Canal Meio

“Como você quer ser apresentado? Com quais credenciais?”, o Meio perguntou a Sérgio Abranches ao final da entrevista. Absolutamente coerente com a tese que está desenvolvendo para seu novo livro, ele respondeu: “Não gosto de credencial, a sociedade da credencial nos atrapalha”. Abranches, a contragosto, se define. “Sou escritor.”

É uma descrição modesta. O sociólogo Sérgio Abranches tem algumas das formulações mais ricas da ciência política brasileira contemporânea. A começar pelo presidencialismo de coalizão, que ele revisita nesta conversa. Há dois anos, diante do assombro do mundo perante Donald Trump e Jair Bolsonaro, ele lançou o livro O Tempo dos Governantes Incidentais. Ali, extraía algo de racional na chegada dessas figuras ao poder, turbinadas pelo medo de parte da sociedade diante das mudanças sociais e tecnológicas. Ele também analisa esse tempo no caso brasileiro e crava que Bolsonaro, assim como Trump, não vai se reeleger.

Mas Abranches agora está dedicado a buscar no passado respostas para as transformações aceleradas do presente e para os questionamentos sobre o futuro. (Ele não quis contar o nome da nova obra para não estragar a surpresa). Nesse flanar pela história brasileira, o escritor chegou a uma equação. Esse temor que o brasileiro tem diante das mudanças sociais e a forma como reagiu a ele, elegendo Bolsonaro, vêm do elemento essencial da formação da nossa nação, lá na nossa Independência, cujo bicentenário celebramos hoje. “É a mentalidade da casa grande, patriarcal e escravista”, ele explica. É começando lá de trás, do nosso momento inaugural oficial, e desembarcando na coalizão que um eventual governo Lula terá de formar que o escritor Sérgio Abranches esquadrinha o Brasil. Confira os principais trechos da entrevista.

Que Brasil é esse que chega aos seus 200 anos de independência?
Estou tentando responder essa pergunta. Estou escrevendo um livro sobre ela. O bicentenário é uma data muito importante, porque a Independência é quando se dá o início do processo de formação do estado nacional. Da nação brasileira. Independentemente do que se pense do Ipiranga, a data inaugural. Nós vamos ter em 2022, assim como tivemos na independência original, momentos diferentes. Vamos ter um momento, digamos, oficial, que é o da campanha, das ameaças de Bolsonaro. No meio acadêmico e intelectual, é um momento completamente diferente, de revisão histórica e crítica do Brasil e uma reflexão sobre como começamos e como chegamos aqui. E na imprensa teremos um pouco dos dois. E qual é o principal vínculo que temos entre 1822 e hoje? É o fato de que a independência já foi feita sob uma forte influência dos senhores de terra. Eles conseguiam se contrapor ao poder da coroa, da metrópole. E tiveram muita importância tanto na conformação do movimento independentista oficial quanto na ideia de uma independência sem rompimento com Portugal. Esse evento que ficou celebrizado na margem do Ipiranga teve outras vertentes. Houve várias tentativas de independência. As duas primeiras foram na Bahia e em Pernambuco. Mas esses outros Ipirangas não resultaram na independência oficial.

Por quê?
Exatamente por conta do tipo de poder e de visão da sociedade que tinham os senhores de terra, a força dominante por trás da coroa brasileira e de Pedro I. Eles viam a nação brasileira como excludente desse povo que era sobretudo de escravizados libertos ou insurgentes, de pobres. E de algumas mulheres importantes. Aqueles que eles não viam como parte da sua sociedade, do seu Brasil. Foi uma independência que já nasceu excludente. A nação nasceu sob o poder da casa grande, patriarcal e escravista. Essa estrutura de relação social se impõe sobre a sociedade brasileira. O domínio da casa grande, do latifúndio, da monocultura persiste, é muito poderoso. Depois, na Proclamação da República, é essa força que faz a república abortar a continuidade do processo abolicionista e, portanto, a eliminação de toda possibilidade de uma política de inclusão, de uma rede de social de proteção para os libertos. Ela vai dominar toda a república oligárquica, que é de coronéis, senhores de engenho. Uma sociedade extraordinariamente bem retratada na literatura da época. Pega Menino de Engenho. É um retrato fiel daquela estrutura de sociedade. Esse tipo de casa grande no Sul está em Érico Veríssimo. Está em todo o Brasil. Hernâni Donato mostra essa estrutura no Pontal do Paranapanema, em São Paulo, e na formação de Mato Grosso. Bernardo Élis, em Goiás.

Os senhores de terra estão sempre em posição de poder?
Essa estrutura de poder não perde. Ao contrário, ela se fortalece na monarquia e se consolida na Primeira República. No Golpe de 1930 e na ditadura de Vargas eles não perdem poder, porque são os dominantes do PSD. Vargas fez o jogo entre o grupo das oligarquias que lhe eram amigas e os trabalhadores. Ele temperou seu trabalhismo com boas relações com uma parte dessa oligarquia rural. A república é construída numa aliança entre a burguesia industrial nascente, que Sérgio Buarque de Holanda muito corretamente define como caudatária desse domínio rural, e completamente dependente da máquina do Estado que Vargas montou para forçar, num certo sentido, a industrialização brasileira. Bom, nessa república liberal de 1946 a 1964 essa força continua sendo muito importante, aborta o movimento de reforma agrária e está no centro da conspiração para derrubar o governo Jango e impor a ditadura militar. Ela fica muito forte na ditadura e continua assim na Constituinte e na Terceira República.

Quais as consequências da predominância dessa força?
Para mim, essa é uma das espinhas dorsais da explicação do Brasil. Tem um livro do Barrington Moore Jr., sociólogo americano, em que ele questiona o seguinte: quando eu olho para a história da formação dos países, como é que eu distingo aqueles que tinham propensão liberal democrática e aqueles que tinham propensão autoritária? A grande diferença é que nos países de propensão liberal democrática o domínio dos senhores de terra é absorvido no processo de urbanização e industrialização inicial. Então, quando os países começam a construir a sociedade moderna, eles já não têm uma força rural preponderante. Agora, ao observar Alemanha, Portugal, Espanha e outros países, a força do patriarcado rural é fundamental. Essa explicação cabe perfeitamente no caso brasileiro. Mas tem um outro aspecto, que é propriamente o que eu estou trabalhando, que é qual a consequência dessa continuidade do poder? Só pra deixar claro. Na Constituinte, havia a UDR, a União Democrática Ruralista, que foi a base do Centrão. É onde estava o atual governador de Goiás, cujos antepassados estavam na fundação do estado. Você vê a continuidade da coisa. Aí, me dei conta de que essa continuidade tem a ver, na verdade, com a construção de uma cultura. Uma mentalidade que é dominante ao longo de toda a história do Brasil. É a mentalidade da casa grande. Na medida em que a casa grande foi perdendo concretude com o fim da escravidão e com a mudança no processo agrícola, duas coisas persistiram. Uma é a grande propriedade, o latifúndio e a monocultura. Se a gente olhar, por exemplo, o que está acontecendo no Cerrado e na Amazônia é soja e gado. É monocultura. E a casa grande continua existindo na mentalidade dominante da sociedade brasileira. Com a visão patriarcal, a dominância masculina, o machismo e a violência contra a mulher, e com a transformação do escravismo em racismo estrutural. Como é que a casa grande consolidou a sua dominância lá no passado? Através da passivação desses movimentos insurgentes.

Como se transformava os movimentos populares ativos em passivos?
De três formas. Pela repressão, pela cooptação — e houve cooptação inclusive de escravos revoltosos — ou pelo que eu chamo de aquiescência. São os mecanismos pelos quais as pessoas, ao olhar aquela situação, o domínio do homem, a inferioridade do negro, a exclusão dele como ser humano e como brasileiro, concordam que as coisas são assim. Você aceita que sejam assim. Mesmo os negros e as pessoas que são excluídas — e aí tem todo o processo de embranquecimento de determinadas pessoas negras, etc. Então essas três formas tornam a maioria passiva. Quem não tem medo da repressão, quem não é cooptável e quem não concorda que as coisas são assim, esses são os revoltosos. Em alguns momentos, eles chegaram a ser majoritários em algumas áreas e setores de algumas regiões do Brasil. Isso é um processo original de imposição dessa mentalidade do domínio da casa grande. A partir daí, como essa mentalidade se propaga e se preserva? Não é uma matéria na sala de aula, mas porque a vida é assim. A criança vê em casa o pai sentado na cabeceira, o pai determinando o que a mãe pode fazer, a mãe cuidando das coisas domésticas, o pai indo trabalhar. A gente chega numa escola e só tem crianças brancas. Depois, à medida que ela vai crescendo, começa a haver a separação entre os homens e as mulheres. As mulheres vão fazer o curso normal, para serem professoras, os homens vão fazer os outros cursos. Ou seja, o cotidiano se constrói a partir dessa mentalidade que foi imposta no passado e ela se propaga. As pessoas começam a ver isso como natural. O homem branco é educado, não formalmente, mas de maneira sub-reptícia, pelo exemplo, pelo modo de vida. Ele é formado como um ser patriarcal e racista.

Isso quer dizer que nada mudou desde a casa grande colonial?
Quando você olha para outras questões, elas mudaram. Por exemplo, o movimento operário mudou muito. Ele começou lá na Primeira República, fortemente influenciado pelos anarquistas da imigração italiana e, na Segunda República, mais pelo Partido Comunista e pelo Partido Trabalhista Brasileiro, e depois foi para o PT. A classe média também sofreu várias rupturas. Na Segunda República, cerca de 70 ou 80% da classe média era estatal. Isso persistiu na ditadura. Hoje a classe média estatal não deve corresponder a 20% do total. Ela é toda privada. Tudo mudou. Não obstante, a gente tem uma propensão autoritária que está aí encarnada no Bolsonaro. E estamos chegando no bicentenário, quer dizer, 200 anos depois ameaçados de repetir 1930 ou 1964.

É uma ameaça real? Ou retórica?
A ameaça foi real e, evidentemente, ainda há um substrato real nela. Hoje, ela é mais retórica. Está claro, por exemplo, que Bolsonaro, sempre que perguntado se vai respeitar o resultado das urnas, ele adiciona um “mas”. Um “respeitarei desde que”. Mas quem julga a transparência e a lisura da urnas? Ele ou o TSE? É ele. E se ele disser “não aceito”? Vai ter respaldo militar e de uma parte da elite para impor sua vontade? Hoje a probabilidade mais alta é de que ele não consiga apoio, ou o apoio seja parcial. Mas se o apoio for parcial a gente pode estar diante da ameaça de uma nova fase da história do Brasil, de divisão nas forças armadas. Então, não acho que a ameaça seja nula. Nem acho que as instituições estejam funcionando plenamente. Não estão. O Ministério Público foi esfacelado. E ele é uma peça fundamental no processo de peso e contrapeso. O Supremo Tribunal Federal funciona bem. Mas o Superior Tribunal de Justiça depende da configuração de juízes, de ministros e da causa. Porque é um tribunal muito grande e disfuncional. A primeira instância funciona muito mal — já funcionava mal antes, mas hoje as varas que são dominadas por juízes bolsonaristas definitivamente não funcionam. A gente não pode se desarmar diante da possibilidade de, no dia 3 de outubro, estar tendo de resistir da forma que for possível à tentativa de um golpe com algum respaldo por parte do Bolsonaro. Ele é golpista e no grupo dele a maior parte dos militares é golpista. É um grupo de generais que não é porque está na reserva que faz o que está fazendo. Sempre fizeram. É um grupo oriundo do setor autoritário, ditatorial dos militares.

O general Heleno era ajudante de ordens do Sílvio Frota [ministro do Exército de Ernesto Geisel].O general Ramos já era um general complicado quando era o comandante de São Paulo. Era duas caras como continua sendo. Mourão era subordinado do Ustra quando ele era torturador. Não são homens inocentes.

Há ainda a questão das polícias e das milícias.
Sim. Tem uma divisão nas Forças Armadas, entre um grupo que é antidemocrático e os neutros — não acredito em militar democrático, deve ser uma minoria ímpar, porque eles são formados para ser hierárquicos e autoritários. Esse é um ponto. O outro é que Bolsonaro tem apoio das milícias e dos CACs. A gente não sabe se são caçadores, colecionadores e atiradores ou se são uma força paramilitar. Há um milhão de armas na rua. E não são armas quaisquer. São armas militares.

Parte da sua tese sobre governantes incidentais é de que, em geral, eles são derrotados na reeleição, porque não entregam o que prometem. Como interpretar os cerca de 30% de apoio sólido que Bolsonaro tem nesse contexto?
Bem, se a gente quisesse continuar com Bolsonaro, ele estaria na frente das pesquisas. No livro sobre governos incidentais, eu falo de dois personagens que sigo estudando: Donald Trump e Viktor Orbán. Acho que Bolsonaro está na trilha do Trump. Não vai ser reeleito. Escrevi que Trump não seria reeleito, estava claro para mim. Você tem uma sociedade que está com medo da mudança. Vem um cara e oferece para ela o sonho de um passado idealizado, que seria na verdade o verdadeiro progresso. As pessoas compram essa ilusão. Ele não entrega. Elas se decepcionam e não votam mais nele. Mas acontece que esses caras não surgem por acaso. Eles são incidentais porque a eleição é atípica, mas eles fazem parte da sociedade. Uma parte que não é majoritária, mas que é muito forte. Por isso eles têm seguidores tão fiéis. O fracasso deles é sempre explicado como uma trama dos outros. Ele ia fazer, não deixaram. Quem? Os comunistas, os chineses, os globalistas. Trump está lá com enorme influência no Partido Republicano e, igualzinho ao Bolsonaro, seu grande medo é ir para a cadeia. Não está mais interessado no poder, porque ele viu que o poder o irrita. Porque é o que ele não pode fazer. A não ser o poder absoluto, que ele não vai ter.

E Orbán?
Orbán é o incidental que consegue uma maioria incidental, e consegue usar essa maioria pra mudar as regras do jogo. E isso coloca um risco maior. Se Trump voltar, evidentemente vai tentar mudar as regras. Ele está esfacelando o Partido Republicano por conta da adesão dos republicanos mais da extrema direita a ele. Isso pode levar nos Estados Unidos à implosão do partido e a fazer um sétimo realinhamento partidário. Se Bolsonaro fosse reeleito, seria forte o suficiente pra mudar as regras do jogo. Colocaria uma espécie de um voto distrital, algum tipo de coisa que desse mais controle às forças conservadoras. E aí ficaríamos de novo com uma oligarquia ao invés de uma democracia. Mas ele é incidental e não vai ser reeleito. Não há hipótese de Bolsonaro ganhar, a não ser que um evento de altíssima intensidade interfira.

Quem é esse brasileiro que topa continuar fechado com Bolsonaro? E quem é o indeciso?
Não há bons estudos sobre a sociedade brasileira hoje. Estudos sociológicos sobre o que pensa o brasileiro. Os que existem não são muito confiáveis. O que eu tenho visto usando basicamente as pesquisas de opinião, que não são surveys sociológicos, do eleitorado brasileiro é o seguinte. De quem vota no Lula, de 40 a 45% do total e, portanto, em torno de 50% dos votos válidos, tem dois grupos ali: a esquerda que sempre votou com Lula, de 20 a 25%, e o pessoal que é anti-Bolsonaro. O grupo dos indecisos é aquele em torno de 20% e mais aqueles que apostaram numa ilusória terceira via, que nunca foi uma promessa viável. São esses 10 ou 11% que estão com Ciro Gomes e Simone Tebet. Esse é um brasileiro que não é de esquerda, ele é de centro direita ou de centro, e acreditou que talvez fosse possível fazer alguma coisa diferente que tivesse tração. Mas não estamos falando de uma situação comum. E não estamos falando de uma comparação entre o petismo e Bolsonaro. Nós estamos falando de uma comparação entre Lula e Bolsonaro. E um Lula que sempre soube se separar dos que fracassam no seu grupo. O que o eleitor olha é o governo e a personalidade do Lula e o governo e a personalidade do Bolsonaro. É impossível não preferir Lula, porque o governo dele foi melhor e porque ele é mais simpático. É impossível.

Como Lula pode responder aos anseios de quem elegeu um governante incidental como Bolsonaro, mas agora o rejeita?
Do ponto de vista da minha tese, desses sentimentos primitivos provocados pelo medo das mudanças tecnológicas e sociais, o governo Lula ainda estava num momento em que essa mudança não era tão ameaçadora. Ela se acelerou depois de seu governo. Esse é um dos problemas que ele vai ter que enfrentar. Ele está pensando com a cabeça do início dos anos 2000 e a gente está num mundo completamente diferente. A própria globalização da época do Lula não existe mais. Os países estão se preparando pra fazer um novo tipo de cadeia de suprimentos, com bases locais multicêntricas em vez de deixar tudo com a China. Toda essa mudança não estava em questão. Lula estava combatendo a pobreza, que era o problema principal, criando universidade, preparando o Brasil para o estágio 1 do processo para enfrentar essas mudanças. Lula falou uma frase outro dia que mostra que ele está com os ouvidos atentos ao que falam pra ele a respeito dessa pós-modernidade. Falando que a biodiversidade da Amazônia pode ser um caminho pra gente ir falando mais de tecnologia. O fato é que, quando o eleitor compara, ele está comparando dois presidentes que prometem tirá-lo desse perigo da mudança.

O que são essas mudanças que tanto assustam, além das tecnológicas? São as de valores?
Na verdade, as mudanças dissolvem os valores. No fundo, o que está acontecendo na sociedade de transição é que ela está se fragmentando. Sob todos os aspectos está se transformando numa sociedade do efêmero. Os produtos são efêmeros não por causa daquela velha obsolescência programada que movia a máquina do consumo. Não. Agora, é porque a tecnologia anda muito rápido e e ela vai criando novas funções e novas possibilidades que as pessoas acabam querendo. É efêmera também no sentido de que o que nós pensávamos no verão passado não é o que nós pensamos no verão deste ano. O verão passado é muito velho. Nossa vida está ficando cada vez mais cheia de presente e de futuro presente. O passado está desaparecendo da nossa vida como uma força determinante, definidora de processos futuros. A força de determinação do passado está diminuindo dramaticamente. Isso rompe inclusive com todos os dogmas da esquerda, de toda a sociologia, mesmo a minha, que pensa numa coisa histórico estrutural. É um problema mesmo. Aí você fala: “poxa, nós passamos os primeiros minutos de conversa falando de passado, de como esse passado determina aquilo que nós temos de conteúdo”. Mas esse conteúdo do passado não pode sobreviver no futuro que se apresenta. Pense em #MeToo, no movimento LGBTQIA+, tudo isso é contra e está ficando cada vez mais forte. A fragmentação da sociedade foi acompanhada dessa criação de vários movimentos identitários — que estão, inclusive, dificultando a agregação dos interesses. É preciso ter a possibilidade novamente de construir uma identidade maior, que abranja e que abarque todas essas novas identidades. Enquanto não temos isso, estamos pulverizando as ideias junto com a fragmentação da sociedade. Estamos eliminando muitos vínculos, inclusive de solidariedade. A não ser quando há um evento que cria essa identidade comum, como foi, em parte, a pandemia. Mas eu achei que depois da pandemia talvez se começasse a construir novos laços de solidariedade e não se construíram. Porque de fato o movimento da sociedade é avassalador.

Essas mudanças assustam a todos?
Esse processo de mudança é tão vertiginoso que a gente não percebe que está mudando com ela. A gente percebe a ameaça. Um jovem de 20 anos olha para o futuro e diz: “caramba, eu estava querendo ser tal coisa e a inteligência artificial vai fazer melhor do que eu. Eu não sei mais o que fazer. Vou ser um desempregado, um ferrado”. É esse tipo de medo que dá espaço para tentativas de formatar uma proposta reacionária que seja suficientemente boa para parecer uma promessa de futuro. Ao mesmo tempo, quando a gente olha pra esse passado — o real, não o idealizado —, ele é um passado, no caso brasileiro, de racismo, de patriarcado, de mentalidade de casa grande. E aí no meio disso tem mais. O que esse presente representa para quem tem a mentalidade da casa grande? A negação completa de tudo que que eu sei que sou, que eu aprendi e valorizo. Não tem mais homem e mulher. Ninguém mais manda nessa casa. Meu filho pode virar mulher de repente. Sabe? Eu não quero isso. A elite ainda não se deu conta do que está acontecendo. Ainda é uma elite analógica, do passado. Mesmo que ela use tecnologia, a mentalidade é analógica. Ela ela ainda pensa como se o mundo fosse mais ou menos o mesmo, com algumas mudanças aqui e ali. “Daqui a 30 anos, seremos mais ou menos isso que somos, estamos lutando pra que sejamos 30% mais do que somos hoje.” Não vai ser assim. O mundo está perdendo todos os paradigmas, até os das ciências exatas. Isso é muito assustador mesmo. Todos nós estamos estamos perplexos.

Bolsonaro não vai ser reeleito. Vai pra lata de lixo da história e, provavelmente, pra algum presídio. Mas o caldo de cultura que produziu Bolsonaro, que o aceitou e acreditou nele, vai continuar presente e pode vir um outro. Pode vir uma pessoa — eu tenho mais medo disso — mais bem aparelhada. Mais sofisticada de pensamento.

Existe no nosso passado algum referencial que possa nos ajudar a navegar nesse cenário?
Nós temos ao longo da história os movimentos que foram derrotados e eram portadores das melhores ideias, dos melhores valores. Os insurgentes da época da independência eram influenciados pelo que havia de melhor, de mais revolucionário no resto do mundo. Os valores democráticos e republicanos têm uma longa história no Brasil. Só que uma história diminuída, é uma história de perda. Isso não significa que ela não faça parte da espinha dorsal do Brasil. É uma linha minoritária, mas ela pode crescer, dominar. Então, o que o Brasil vai precisar fazer, e aliás está fazendo, é garimpar a sua história. Não em negação, porque houve um momento em que a história crítica era revisionismo histórico, de que não tivemos herói nenhum, foi tudo uma bagunça e por isso é que a gente está nessa situação. Não é bem isso. Vários desses heróis oficiais fizeram papeis importantes. Mas de pensar no processo de formação do Brasil tal como ele é. Nós tivemos vários heróis sufocados, reprimidos, mortos, que eram portadores de uma outra ideia de Brasil. Essas outras ideias de Brasil podem ser reavivadas e algumas delas estão prontas para serem mais importantes nesse momento de revolução tecnológica. Talvez elas não fossem factíveis numa situação que o Brasil tinha no passado. Agora, o Brasil não vai conseguir sobreviver no século XXI, e quando eu digo sobreviver eu estou falando sério, porque as nações podem não sobreviver e virar uma sociedade de escombros, mas o Brasil não tem condições de ser bem sucedido se não se livrar da mentalidade de casa grande e do poder da área rural.

Como o agronegócio se encaixa nesse Brasil?
Não é que a gente tenha que destruir o agronegócio. Mas nós precisamos forçar ou induzir o agronegócio a abandonar a mentalidade da casa grande. A ser de fato uma força nova. Ele adota tecnologia, é globalizado, mas é atrasadíssimo do ponto de vista das suas ideias. Não é que vai deixar de ser conservador. De direita. Pode ser. Mas tem que ser em sintonia com o novo mundo. Porque senão nós não vamos dar certo. E por outro lado nós precisamos criar outros setores. Temos de nos livrar da dependência tecnológica e parar de proteger aquilo que não somos capazes de fazer bem. Você gasta US$ 20 bilhões por ano na Zona Franca de Manaus. Pra fazer refrigerante e motocicleta. Devia estar usando isso para fazer novas tecnologias. Temos valores na sociedade brasileira, valores do bem, que precisamos redescobrir, reavivar na memória dos brasileiros e mostrar que o Brasil tem uma outra história para fazer. Tem um futuro. Vou te dar um exemplo. O milho mexicano era todo transgênico e perdeu todas as qualidades nutricionais. Virou um milho que, na verdade, eram espigas de açúcar. Foi uma tragédia sanitária também. Aí, o México proibiu o milho transgênico, mas não tinha mais milho nenhum que prestasse. Aconteceu isso com o milho e com o tomate. Eles vieram aqui para o Altiplano da Bolívia e do Peru buscar os milhos originais que ainda eram cultivados pelos indígenas e o tomate. São milhos feios, a espiga não é completinha, não é regular, tem milho preto, roxo. Mas eles são os bons do ponto de vista nutricional. É isso que a gente precisa fazer com nossos valores e ideias que foram sufocadas pela repressão, pela cooptação e pela aquiescência ao longo da nossa história. Pegar essas produções originais da sociedade brasileira e trazê-las para uma cultura com as propriedades democráticas e republicanas que elas tinham.

Uma das principais teses que você formulou foi sobre o presidencialismo de coalizão. Estamos caminhando provavelmente para uma coalizão muito desafiadora se Lula realmente for eleito. Como você imagina que vá ser esse processo de rearranjo?
Primeiro, a minha hipótese de presidência de coalizão foi muito modificada pela segunda geração, que me sucedeu, e ela foi ficando muito institucionalista. O meu modelo de presidencialismo de coalizão não era institucionalista, era sociológico. Vejo o presidencialismo de coalizão como uma decorrência necessária da nossa heterogeneidade estrutural, que se manifesta tanto do ponto de vista social das desigualdades quanto do ponto de vista do federalismo. Um federalismo extenso e heterogêneo. Nós temos vários sistemas políticos estaduais, que têm de virar uma soma nacional na eleição do presidente e na composição do Congresso Nacional. Essa soma acaba sendo maior do que as partes. As partes se movimentam e criam problemas. A segunda coisa é a seguinte: se o presidencialismo de coalizão é decorrência da sociedade e a sociedade está se fragmentando cada vez mais, isso significa que o presidencialismo de coalizão vai entrar em crise. É inevitável. E já entrou. Os partidos se fragmentaram de uma forma intolerável do ponto de vista da governabilidade. Não há possibilidade de governabilidade com os 35 que são representados na Câmara. Eles acabaram produzindo uma miniaturização das bancadas. Em terceiro lugar, a eleição deste ano terá sua governabilidade determinada pelo resultado das eleições para a Câmara dos Deputados. A eleição da Câmara se tornou tão importante quanto a de presidente.

De que maneira?
As regras são novas. É a primeira vez que a gente faz uma eleição geral para a Câmara Federal e para as assembleias estaduais legislativas sem coligação proporcional. Isso muda radicalmente a estratégia dos partidos. Tanto dos grandes quanto dos pequenos. E dos políticos, porque todos eles usavam partidos outros, terceiros como suas forças auxiliares. Todos tinham estratégias de coligação eleitoral que acabavam informando em parte a coalizão de governo. Sem a coligação, os partidos estão tateando a estratégia eleitoral. Ninguém tem certeza do que que vai acontecer. Não está claro para mim que dinheiro vá fazer a diferença. Você bota uma montanha de dinheiro num candidato fraco, que não tem capacidade de penetração, e ele não se elege. Você precisa fazer quociente eleitoral e precisa ter deputados muito bem votados porque tem uma mudança na cláusula de barreira, que passou a ter uma vinculação pessoal também. É muito complicado. Pode ser inclusive que dê um impasse na hora de calcular os eleitos. Provavelmente vai diminuir a fragmentação. Há um grande número de partidos que não vai se reeleger. O problema todo é saber que partidos não vão estar lá. Dos que estarão, alguns são mais moldáveis e outros menos. A esquerda está com estratégias inteligentes. A Rede está pegando campeões de voto nos estados. Marina Silva está lá disputando o topo da votação com o Guilherme Boulos. Essas pessoas são puxadoras de voto. A gente só vai saber isso no dia 3 de outubro. Essa é uma outra vantagem, por exemplo, se Lula ganha no primeiro turno, porque ele pode imediatamente começar a pensar qual estratégia de montagem de coalizão a partir da noção que ele vai ter de quem fez a maioria. Agora, é inevitável a conclusão de que o presidencialismo de coalizão tal como ele existe está numa crise muito grave. E a gente vai precisar descobrir novas formas de organização da governança federal. Talvez a natureza institucional do presidencialismo de coalizão tenha que mudar. Eu vi o pessoal da nova geração fazendo muito elogio, achando que o presidencialismo de coalizão funciona muito bem. Nunca achei isso. Como nunca achei que a democracia brasileira funciona muito bem.

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