A violência que sacrifica a infância e a sociedade


Imagem ilustrativa. Foto: Unsplash / Caleb Woods

Colunista convidado
ESTADÃO

Número de casos de violência contra crianças de até 6 anos registrados no 1.º semestre de 2022 é uma preocupação, uma tragédia nacional

Violência intrafamiliar é um fenômeno silencioso. Infelizmente, trata-se de uma inversão muito frequente: o vínculo afetivo e a proximidade, que deveriam proteger alguém da agressão, acabam protegendo o agressor.

Quando a vítima é uma criança, especialmente no período da primeira infância (do nascimento aos seis anos de idade), o silêncio é ainda mais alarmante. Aquelas que sofrem violência física, sexual ou psicológica não têm como denunciar e, em geral, ficam tão acuadas que não pedem ajuda. O sofrimento psíquico acarreta consequências para seu desenvolvimento e ao longo da sua vida.

Mesmo sem levar em conta a subnotificação, o número de casos de violência contra crianças de até seis anos registrados no primeiro semestre de 2022 é uma preocupação. Foram 122.823 violações, o que representa, em média, 673 registros por dia, tendo como vítimas crianças na primeira infância. Trata-se de uma tragédia nacional.

Os dados constam no estudo Prevenção de violência contra crianças, recém-lançado pelo Núcleo Ciência Pela Infância (NCPI). Foram colhidos nos registros do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022) e do Disque Denúncia, um serviço do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH).

Dentro de casa acontecem 81% dos casos. Entre os agressores, espanta a preponderância das figuras materna (57%) e paterna (18%), seguidos de padrasto ou madrasta (5%), avós (4%) e vizinhos, conhecidos ou outros membros da família (16%). Os dados do primeiro semestre de 2022 mantêm uma distribuição semelhante à encontrada no recorte de 2021 em relação aos agressores. A figura feminina prepondera nos cuidados às crianças, o que leva aos números mais altos nas estatísticas.

Os casos de estupro de vulnerável (de 0 a 13 anos de idade) concentram 61,3% do total das denúncias no País, e 19,1% das vítimas estão na faixa de 5 anos a 9 anos e 10,5% têm idade entre 0 a 4 anos.

A violência na infância impõe danos físicos e emocionais. A exposição frequente a situações de agressão gera o estresse tóxico: alterações fisiológicas e psicológicas que interferem no funcionamento do sistema nervoso central da criança, em áreas relacionadas à memória, ao aprendizado, às emoções e ao sistema imunológico, contribuindo para o surgimento de doenças crônicas.

É comum haver, também, mudança de comportamento, como aumento da agressividade, dificuldade de atenção, ansiedade, depressão e alterações psiquiátricas. Esses efeitos prejudicam o processo de aprendizagem e podem persistir até a vida adulta. Isso contribui para o perverso “ciclo intergeracional da violência”, em que o comportamento violento passa para a outra geração.

O primeiro semestre de 2022 teve praticamente a mesma quantidade de denúncias e registros que todo o ano de 2021. A constatação reforça a tese de que, quando as crianças estavam isoladas em casa com suas famílias, a subnotificação de violência tenha sido ainda maior.

Em parte, a maior subnotificação dos casos de agressão a crianças pequenas durante a pandemia é explicada pela falta de acesso aos serviços públicos. Isso evidencia a importância de preparar os profissionais de saúde, educação, assistência social, Judiciário ou segurança pública para reconhecer suspeitas de agressão, lidar com esses casos, acolher as vítimas e orientar a conscientização das famílias sobre disciplina positiva não violenta. Esse trabalho precisa da mobilização do poder público.

Se é nas famílias que se concentra a maioria dos agressores, é nelas também que as medidas de combate e prevenção devem estar focadas. A estratégia de maior retorno é investir nos programas para desenvolver a parentalidade positiva, ou seja, o exercício da função parental com o objetivo de promover o desenvolvimento da criança, priorizando sua segurança e estimulando suas capacidades para que ela tenha cada vez mais autonomia e um desenvolvimento adaptativo.

Programas de intervenção centrados na parentalidade aumentam a compreensão dos cuidadores sobre o desenvolvimento infantil, diminuem o estresse parental e melhoram as práticas parentais com estratégias de disciplina e comunicação positiva com os filhos. Com isso, há a redução dos impactos negativos da coerção, bem como a melhoria do funcionamento emocional e comportamental. Uma pesquisa identificou que mesmo mães com histórico de violência na infância apresentaram melhora nas práticas parentais quando participaram de um programa focado nas boas relações com seus filhos.

A violência infantil é uma grave violação de direitos humanos que não pode ser ignorada e subestimada nas suas consequências. Ela destrói recursos e potencial humano. Para enfrentá-la, deve-se contar com uma estratégia de atuação integrada, intersetorial e centrada na criança. Combatê-la é um dever de todos e exige compromisso especialmente dos gestores públicos para oferecer as políticas necessárias à mudança.

*Por Maria Beatriz Martins Linhares

PROFESSORA ASSOCIADA SÊNIOR DO DEPARTAMENTO DE NEUROCIÊNCIAS E CIÊNCIAS DO COMPORTAMENTO DA FACULDADE DE MEDICINA DE RIBEIRÃO PRETO DA USP, COORDENADORA DO LABORATÓRIO DE PESQUISA EM PREVENÇÃO DE PROBLEMAS DE DESENVOLVIMENTO E COMPORTAMENTO DA CRIANÇA, PESQUISADORA SÊNIOR DO CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E TECNOLÓGICO (CNPQ), PESQUISADORA DO CENTRO DE PESQUISA APLICADA À PRIMEIRA INFÂNCIA E PESQUISADORA MEMBRO DO NÚCLEO CIÊNCIA PELA INFÂNCIA (NCPI).

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