Edição de Sábado: Diplomacia com "engenho e arte"

 Canal Meio

Por Paulo Sotero*

A presença do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva na vigésima sétima Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas na próxima semana, no Egito, marcará o retorno do Brasil a negociações das quais se ausentou nos últimos quatro anos, numa das mais estúpidas decisões da história da diplomacia brasileira. Mas é também um acontecimento a ser celebrado, pois acontece no trigésimo aniversário da adoção da Convenção, na Rio-92.

Sem o Brasil, a conversa seguiria capenga e fadada ao fracasso, já que excluiria uma das maiores potências ambientais – e aquela que, gigante por sua própria natureza, dá lastro à Convenção. A expressão “potência ambiental” foi cunhada pelo veterano diplomata Rubens Ricupero, pai do Pacto dos Países Amazônicos, ex-ministro do Meio Ambiente e da Fazenda, mentor de talentos e formulador de conceitos que abarcam os interesses permanentes da nação.

Mas devagar com o andor. E cuidado com a vaidade! Celebração, neste caso, não é festa. É, sim, um chamado à reflexão e ao engajamento num tema que tirou o país do mapa por obra de um líder acidental mas brasileiríssimo em suas limitações. E que pode agora reintegrá-lo e dar-lhe a relevância internacional que sempre buscou. O momento pede coragem e liderança, ou “engenho e arte”, como escreveu o grande poeta de nossa lingua, Luís de Camões, e relembrou na semana passada um outro português, o secretário geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, ao definir o desafio à frente na abertura de um evento precursor da COP27 em Sharm el-Sheikh. “A humanidade tem uma escolha a fazer: cooperar ou morrer”, disse Guterres. Trata-se, explicou ele, de fazer “um Pacto de Solidariedade sobre Clima ou um Pacto de Suicídio Coletivo.”

O primeiro exigirá de todos os países um esforço adicional de redução das emissões de carbono causadoras do aquecimento da atmosfera e das mais que evidentes mudanças climáticas, com as nações mais ricas e as organizações financeiras internacionais dando assistência às economias emergentes, e todas elas acabando com a dependência de combustíveis fósseis e a construção de usinas a carvão, provendo energia limpa a todos e unindo-se para combinar estratégias e capacidades para o bem da humanidade. Uma missão gigantesca. Guterres acentuou que os dois países mais ricos, Estados Unidos e China, têm a responsabilidade especial de juntar esforços para tornar esse pacto uma realidade. “É a nossa única esperança de alcançar nossas metas climáticas.”

Para o Brasil pós-Bolsonaro, o desafio é imenso, ainda mais numa sociedade desigual como a nossa e propensa, no seu andar de cima, a não enxergar bem a realidade e, por isso, a desperdiçar oportunidades.

A expectativa criada pela acolhida calorosa ao próximo presidente, esperada na COP27, abre um caminho virtuoso e proveitoso – se for percorrido com os pés no chão e espírito de cooperação que exibimos antes de perdermos o rumo, uma década atrás. Para tanto, Lula, que participará da reunião de Sharm-el-Sheihk como convidado da delegação do Pará, terá que oferecer as diretrizes que guiarão a política climática de seu governo e indicar os interlocutores que falarão em nome do pais.

Segundo o  bem informado Caio Junqueira, da CNN Brasil,  a ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira é cotada para uma nova secretaria no Planalto, incumbida das negociações sobre clima. Uma bióloga que fez carreira no ministério do Meio Ambiente, Izabella ganhou notoriedade e respeito internacional na COP25, em Paris. Ela é hoje co-presidente do Painel Internacional de Recursos, plataforma do Programa da ONU para o Meio Ambiente (PNUMA) que organizou a COP em curso no Egito. Como ministra do governo de Dilma Rousseff, coube a Izabella liderar as negociações do Código Florestal adotado há dez anos, depois de  intenso debate nacional. Depois de deixar o governo, a ex-ministra ajudou a impulsionar a Concertação pela Amazônia, foro que reuniu empresários de peso, como Guilerme Leal, da Natura, e ajudou a preparar o caminho reaberto depois da desastrosa passagem de Bolsonaro pelo Planalto.

Outra possível colaboradora de Lula nessa área é a ex-ministra, ex-senadora e agora deputada eleita Marina Silva. Vista mundo afora como um símbolo da necessária e virtuosa luta contra o desmatamento, que diminuiu no período em que ela foi ministra do Meio Ambiente, Marina é forte candidata para retornar à pasta e ajudar na reconstrução do prestígio internacional que o Brasil conquistou durante sua passagem pelo governo Lula.

O respaldo internacional à política ambiental e climática do país  dependerá crucialmente da qualidade das políticas que o novo governo adotar e de sua capacidade de prevalecer no debate doméstico, que está fadado a se ampliar e ganhar espaço dentro e fora do país. Lula e os partidos da ampla aliança que o levou de volta ao poder terão contra si na sociedade, no  Congresso Nacional e nas Assembleia Legislativas representantes de fortes interesses econômicos, políticos e das igrejas evangélicas que apoiaram Bolsonaro e ficaram órfãs .

O carisma pessoal e a competência política de Lula ajudarão a resolver uma parte do problema. Mas dará trabalho conter a ala dos conservadores alucinados e sem freios como o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles. Um autodeclarado passador de boiadas, Salles estará no Congresso como um dos deputados mais bem votados da barulhenta aliança formada pelo que existe de pior na direita. O ex-ministro, que já foi secretário de governo em São Paulo sob o vice-presidente eleito de Lula tem um temperamento explosivo, que será provavelmente exacerbado pelos mais de 640 mil votos que recebeu nas urnas – bem mais do que o dobro do da votação de Marina.

Não faltará a  Lula o respaldo de países empenhados, por seus próprios motivos e interesses, no sucesso de uma estratégia ambiental robusta. A Noruega, por exemplo, saudou o anúncio feito pelo presidente eleito de reabrir o país ao recebimento de ajuda externa via Fundo Amazônico, de US$ 1 bilhão aproximadamente, constituído e oferecido por Oslo e Berlim. Ter o Brasil de volta à coluna dos países racionais é noticia auspiciosa que a Europa também esperava e agora aplaude.

Nos Estados Unidos, o presidente Joe Biden acaba de ver sua liderança política e estratégia ambiental reforçadas pelo surpreendente resultado das urnas nas eleições legislativas, que preservaram e podem ter ampliado espaços de cooperação política, econômica e científica que ele mencionou no telefonema de felicitações que deu a Lula por sua eleição. O desejo de diálogo com o Brasil foi sublinhado na quinta-feira, dia 10, pelo conselheiro de segurança nacional de Biden, Jack Sullivan, que deixou aberta a possibilidade de os dois líderes reunirem-se em Sharm el-Sheick.

China, Japão, Coreia do Sul e Austrália nunca foram problema para o Brasil avançar na defesa de seus interesses.

Mas há risco potencial de o país se perder na definição de sua estratégia internacional. Se acontecer, isso se refletirá nas inevitáveis disputas internas sobre políticas a implementar e nas  brigas por posições no gabinete de Lula e seu entorno.

O experiente ex-chanceler e ex-ministro da Defesa, Celso Amorim, que acompanha Lula no Egito, tem antigas e arraigadas posições negativas sobre aproximar o Brasil do “poder hegemônico”, o eufemismo que ele gosta de usar quando se refere aos Estados Unidos. Sentimento recíproco existe em Washington. Supostamente, Amorim, que é próximo e leal escudeiro do presidente , terá, aos 80 anos, função de conselheiro influente no gabinete de Lula.  De que forma e com que objetivos ele  atuará em sua nova missão?

Brasil e Estados Unidos, as duas maiores democracias das Américas, estão entre os maiores produtores e fornecedores de alimentos do planeta. Como usarão eles o inegável poder que essa capacidade lhes dá para brigar ou para cooperar? Juntos, eles podem evitar a próxima crise de falta de alimentos no mundo, escreveu Natalie Unterstell no jornal The Hill, lido por deputados e senadores americanos e por cerca de 30 mil assessores.

artigo, que Natalie escreveu em parceria com Nigel Purvis, ex-secretário de Estado adjunto para Oceanos, Meio Ambiente e Ciência, propõe três iniciativas que os EUA devem tomar para apoiar a retomada do crescimento econômico no Brasil sem desmatamento.

Primeiro, o Congresso americano deveria aprovar  a criação de um fundo de  de US$4,5 bilhões para uso do Brasil na contenção e reversão do desmatamento da Amazônia. Adicionalmente, o presidente Biden deveria encorajar os líderes das sete potências econômicas do G-7, com quem se reunirá semana que vem, a destinar ao Brasil 25% de futuros financiamentos para políticas de clima.

Em segundo lugar, o Congresso americano deveria aprovar legislação para incentivar os cidadãos e as corporações americanas ou que operam nos EUA a evitar compras ou investimentos em negócios que inadvertidamente alimentem o desmatamento da Amazônia. O presidente americano deveria também trabalhar com Lula na construção de um processo de adesão do Brasil à OCDE que produza um roteiro de salvaguardas e de políticas voltadas à proteção da Amazônia.

O artigo de Natalie e Purvis receberia o imprimatur de Tom Lovejoy, amigo de saudosa memória que nos deixou no Natal passado, angustiado com a ofensiva de Bolsonaro e de seu governo para destruir a floresta que ele estudou durante mais de meio século com parceiros cientistas brasileiros como Eneas Salati e Carlos Nobre.

Em mais de cinco décadas de trabalho, que incluiu longas viagens anuais à região, Lovejoy aprendeu que a Amazônia é fonte de vida e riqueza derivados do conhecimento que só a pesquisa científica de qualidade pode oferecer. Um grande educador, passou a vida ensinando essa lição a americanos e brasileiros e deixou um precioso legado. Este inclui o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, cuja semente foi plantada por Lovejoy no laboratório de pesquisa da Smithsonian Institution, que ele criou com a colaboração de colegas brasileiros a quarenta quilômetros de Manaus.

Entender e abraçar o legado de Lovejoy aumentará as chances de Lula e seu novo governo enfrentarem as consequências catastróficas dos quatro anos do desgoverno Bolsonaro. Ajudará também, e muito, se Lula prestar atenção no que ouvirá de Joe Biden em seu primeiro encontro, possivelmente na semana que vem, à margem da COP27. Enfrentando baixos níveis de popularidade, Biden acaba de alcançar uma vitória notável nas eleições de midterm. Seu Partido Democrata manterá o controle do Senado e deixará os republicanos com uma maioria apertadíssima de meia dúzia de cadeiras na Câmara, politicamente de pouca utilidade. O resultado contrariou a tradição, segundo a qual o partido no poder na Casa Branca vai mal nas eleições de meio de mandato. Prestes a completer 80 anos, Biden foi bem, muito bem – e ficará feliz em contar a Lula como fez a proeza.

Se o futuro presidente tiver interesse em receber sugestões de Biden sobre como governar com sucesso, aos 70 e muitos anos, uma democracia dividida, seu afabilíssimo colega americano terá prazer em compartilhar o que aprendeu. Biden sabe que Lula assumiu o compromisso de governar apenas por um mandato. Supostamente, isso só mudará se os primeiros quatro anos de sua administração forem bem sucedidos – e se Janja, esposa de Lula, concordar. Se perguntado, o líder americano dirá a Lula para escolher bem suas batalhas e o exortará a ficar do lado certo, ou seja, o lado da defesa das democracias, que pautou sua vida de homem público.

Um batalha sobre a qual os dois líderes podem ter interesse em trocar é a proposta de criação de uma OPEP com Brasil, Congo e Indonésia na liderança. No papel, a idéia parece boa. Na realidade, passaria pelo envolvimento do Brasil na guerra civil em curso há décadas no país africano.

No assunto mais urgente da pauta internacional – a guerra da Ucrânia, que a Rússia está perdendo – Lula será respeitosamente aconselhado a medir seus passos e não repetir Bolsonaro, que endossou a postura agressiva da Moscou duas semanas antes da invasão. Se o problema for garantir o abastecimento de fertilizantes e de óleo pesado que o país importa da Rússia, Lula ouvirá que os EUA, a Europa e outros aliados ajudarão o Brasil.

Mas pode ser que haja razões, por simpatias ideológicas, na inclinação do país para o lado de Moscou e Celso Amorim já descartou em declarações públicas a hipótese de o Brasil alinhar-se com “o poder hegemônico”. Como o Brasil é um país soberano, ninguém pode impedir seu governo, escolhido pelo povo em eleições livres, de assumir riscos e fazer bobagens. Mas, se perguntado, Biden lembrará Lula que há outro ou outros caminhos e que os EUA estão prontos a cooperar com o Brasil para explorar as possibilidades.

*Paulo Sotero é jornalista e pesquisador sênior do Brasil Institute no Wilson Center, em Washington

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