A gestação do neonazismo brasileiro


O historiador Michel Gherman decompõe como o bolsonarismo articulou, com anuência de parte da direita liberal, uma gramática nazista que pode sair do controle com sua derrota e se tornar uma epidemia

Por Flávia Tavares

É uma conversa difícil. Dolorosa. Necessária. A imagem de um jovem de 16 anos atirando contra colegas e professores, ostentando uma suástica, no Espírito Santo, nos obriga a encarar sem constrangimento o fato de que o nazismo está em franca ascensão no Brasil. Após a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro, mais do que isso, pode estar em estado epidêmico: descontrolado, com origem local, mas sem um ponto originário definido. Esse é o diagnóstico do historiador Michel Gherman, professor de Sociologia e História Social da UFRJ. O caldo que permitiu que o Brasil saltasse de 72 para 1.117 células nazistas entre 2015 e 2022, de acordo com monitoramento da antropóloga Adriana Dias, mistura bolsonarismo, olavismo, racismo, negacionismo histórico, ressentimento. E tudo isso gestado diante de nossos olhos explicitamente desde, pelo menos, 2002.

Agora, enquanto quem pega em armas e atira em escola ainda é majoritariamente o perfil do "incel", o garoto adolescente e jovem incapaz de se relacionar e abastecido exclusivamente por ódio online, como em Aracruz (ES), é apenas uma questão de tempo para que o homem que faz bloqueios nas rodovias mate uma professora de História. E a adesão ao neonazismo brasileiro não poupa sequer negros e judeus, as vítimas preferenciais do nazismo original. Isso porque Bolsonaro coloniza esses grupos, substituindo suas identidades pela ideologia bolsonarista. É disso que Gherman trata em seu novo livro, O não judeu judeu: A tentativa de colonização do judaísmo pelo bolsonarismo. E aqui nesta entrevista.

Do que estamos falando quando discutimos nazismo e neonazismo em 2022?

Essa pergunta é importante e difícil de ser respondida. Durante muito tempo a definição de nazismo estava na mão de intelectuais — historiadores, sociólogos, cientistas políticos — que olhavam para o fenômeno do entre guerras e diziam: “olha, aqui está um movimento que se transformou numa política de Estado em vários lugares do mundo e que precisa ser definido ideologicamente”. Você tem o [Robert] Paxton, um dos historiadores que definem nazismo a partir de uma coerência ideológica. Outro é o [Zeev] Sternhell, especialista em fascismo na França. Paxton é um pouco mais liberal na sua definição. Ele faz uma espécie de sanfona ideológica entre o mínimo fascismo e o máximo fascismo. Há perspectivas maximalistas (o fascismo alemão, que além de ser autoritário e militarista era racial) e minimalistas (no caso francês, que se vinculou a um outro fascismo e não se transformou numa política francesa). Com Sternhell, é a mesma coisa, um pouco mais específico de uma política antiliberal do pós-Primeira Guerra Mundial. Mas aqui tem um problema. O fascismo não é só um movimento ideológico.

O que é, então?

É um movimento comportamental fundamentalmente vinculado a perspectivas morais. Walter Benjamin analisa o fascismo a partir da estética — e lembre-se que ele morreu antes de o nazismo chegar a ser o que foi. Ele vê que o nazismo produz-se a partir de uma noção não coerente ideologicamente, mas a partir de uma prática. O fascismo é uma forma de se colocar, de se apresentar, de ler o mundo. Por exemplo, o ressentimento moral é importante na análise de Benjamin. [Theodor] Adorno é outro que fala sobre a subjetividade autoritária do fascista. Para ler o fascismo, e não há sombra de dúvidas de que há fascismo hoje no mundo, você vai ter problemas se buscar coerência ideológica. Tem que se buscar um posicionamento, na palavra em inglês.

Que posicionamento é esse?

É um “eu sou porque eu me sinto”. E esse “eu me sinto” produz um vínculo com uma prática política que odeia estrangeiros, mulheres, e que lê o mundo a partir de uma gramática, e essa palavra é muito importante, conspiracionista. Há setores que percebem outros setores — muito diferentes daqueles dos anos 1930, agora são professores de história, de sociologia — como parte de uma conspiração para mudar o sexo dos seus filhos. É uma esquerda com uma dimensão de corrupção, não só ideológica. A ideia de conspiração é fundamental. A noção de que as transformações no mundo são explicadas por conta de grupos que detêm o poder de promovê-las. E eles podem ser comunistas, professores de história ou ciclistas, como a Hannah Arendt dizia. No caso do Brasil, temos uma figura muito importante que é Jair Bolsonaro. Ele não tem só essa gramática conspiracionista como se liga de maneira estética ao nazismo. Há muito tempo. Quando alguém cita de maneira positiva Hitler no plenário da Câmara, talvez ele seja fascista. Quando cita pela segunda vez, dizendo que os alunos de um colégio militar podem homenagear Hitler como paraninfo, eu começo a desconfiar. Quando cita pela terceira vez, como um exemplo de ministro da educação, já dá pra pedir gol no Fantástico. Em 2012, ele faz citação positiva do negacionista do Holocausto David Irving em programa de TV aberta. Mais tarde, vínculos de uma gramática nazista vão aparecendo na sua campanha eleitoral.

De que maneira?

Um exemplo pouco mencionado: Bolsonaro faz um discurso na Hebraica do Rio de Janeiro, em 2017, absolutamente nazista diante da bandeira de Israel. Ele pega as vítimas históricas do nazismo, as coloca como sequestradas na dimensão ideológica e faz um discurso nazista para elas. Bolsonaro fala literalmente que no mundo há raças boas e raças ruins. E cita quais são as raças boas: alemães, italianos e japoneses.

Estamos falando de um personagem que sequestra e hegemoniza a direita e a extrema direita no Brasil a partir de uma gramática e uma estética nazista.

É nazista? Ou fascista?

Francisco Carlos Teixeira da Silva, um dos maiores especialistas do Brasil, trabalha com a ideia de fascismos, no plural. O que diferencia o nazismo, um tipo de fascismo, dos outros tipos são basicamente dois elementos. O primeiro é o racial, extremamente presente. O nazismo é mais antissemita do que qualquer outra coisa. O antissemitismo tem pouco a ver com o judeu, tem a ver com a imagem que o nazista tem do judeu. O segundo elemento é a perspectiva exterminacionista do nazismo. O nazismo é, por assim dizer, um fascismo que percebe a possibilidade de queima de etapas. [Jeffrey] Herf diz que o nazismo é uma revolução reacionária. O nazismo tem como projeto o passado. E percebe a possibilidade de chegar de volta ao passado a partir de uma aceleração da história. Ele acelera a história para trás e, para isso, precisa exterminar — primeiro, os judeus, depois outros grupos. A ideia de revolução reacionária é uma perspectiva profundamente racista. Isso não foi o nazismo que criou. Arendt fala que o nazismo é produto do colonialismo. Surge no colonialismo, a partir do colonialismo e não apesar do colonialismo. Mas ele transformou o racismo e o antissemitismo em políticas centrais. Nisso, ele é diferente dos outros fascismos.

Como se conquista judeus, negros e pardos a um projeto nazista, como Bolsonaro consegue fazer?

Primeiro, porque Bolsonaro faz uma arquitetura absolutamente genial. É preciso entender que Olavo de Carvalho, que vamos discutir mais adiante, e Bolsonaro têm uma arquitetura política muito bem construída, apesar de terem inteligência limitada, de tirar os símbolos nazistas e colocar a gramática nazista no seu lugar. Em vez de usar uma suástica, eu falo a suástica. Bolsonaro teve que desconstruir Hitler, embora no meio da campanha tenha abraçado um sósia, mas em vez de falar de Hitler, ele constrói a imagem de que ele próprio vai substituir o líder. A segunda questão fundamental é que ele trabalha com a ideia de que nem todos os negros e nem todos os judeus são problemáticos. É aí que ele ideologiza o nazismo, que é estético. Com a ideia do negro de dentro e o de fora; o judeu de dentro e o de fora. A primeira manifestação contra Bolsonaro foi justamente na porta da Hebraica e, no discurso, ele falava: “esses caras que estão lá fora têm cérebro de formiga”. A plateia batia palma. Olavo de Carvalho, 13 anos antes, dizia a mesma coisa. A ideia de dentro e de fora dá para as pessoas diante de um de um candidato a presidente da República o desejo de ser parte da maioria. No caso dos negros, também há a questão da resistência. Bolsonaro fala na Hebraica dos quilombolas. Pode ser que nunca tenha lido, mas está se referindo a Abdias do Nascimento, ao quilombismo. O negro “bem comportado”, que aceitou a escravidão e esperou ela acabar, hoje está bem. Ele desenha a diferença entre o negro que resiste e o que aceita o seu destino, assim como o judeu. Por fim, há o elemento que eu chamo de colonização.

O que é essa colonização de que você trata no seu livro?

É o que Bolsonaro faz com negros, judeus, gays que o apoiam. Colonizar no sentido de sequestrar. A ideia de que você pode ser meu amigo, se perceber que eu faço parte de você mais do que aquele cara que é da tua dimensão étnica. Bolsonaro recria uma identidade negra, judaica, gay, que não é mais uma identidade de sexo, gênero, étnica ou cultural. Mas é uma identidade política ideológica. Substitui todas pela identidade bolsonarismo. Ela passa a ser primordial. No caso dos judeus, chamo essa nova identidade de não judeu judeu. O não judeu judeu coloniza o judeu bolsonarista e o judeu bolsonarista enxerga o judeu não bolsonarista como adversário. Apesar de fazerem parte da mesma origem étnico-cultural, ele não é parte da comunidade política ideológica recriada.

Mas o bolsonarismo tem interesse em eliminar os judeus como os nazistas?

Olha, eu costumo dizer que acredito pouco nos fascistas. O discurso é de “venham para o meu lado que vocês vão ficar bem”. Mas, em 2018, Bolsonaro disse em Fortaleza que as minorias têm de saber que elas se adaptam ou desaparecem. Eu não sei o que é se adaptar. Se eu fosse um judeu bolsonarista, ficaria preocupado com essa definição. Se adaptar é se converter ao cristianismo? Eu estou disposto a isso?

Essa “arquitetura genial” de Bolsonaro é pensada ou acidental?

O discurso racista não exige um nível intelectual muito poderoso. Mas eu ouvi por horas e horas o discurso de Bolsonaro na Hebraica do Rio. Ali, há tantos elementos subterrâneos. Ele começava falando do [jornalista] Ancelmo Gois, aparentemente sem qualquer sentido. Mas de repente você começa a entender. O discurso começa a fazer sentido nos momentos de racismo, de ódio mais explícito. No livro, eu chamo isso de ilhas de racionalidade no oceano de caos. Fiquei tão interessado nisso que fiz um um um pedido nas minhas redes sociais para encontrar o discurso do Olavo de Carvalho em 2004 na Hebraica de São Paulo. Os elementos que fazem sentido no discurso de Bolsonaro estão todos ali. Então, não estou falando que Bolsonaro arquitetou, mas foi produto. Seu assessor Filipe Martins, aquele do gesto supremacista, está dentro disso desde o início, foi para a África aprender africâner. Volta e já se incorpora ao discurso do Olavo. Ao contrário do que aconteceu com outros nomes desse governo, Martins está ali, até o fim. O próprio Eduardo Bolsonaro acaba fazendo conexões entre a dimensão do olavismo ideológico, aqui sim como arquitetura muito bem produzida, com o bolsonarismo.

Por que quase 80 anos depois do fim da Segunda Guerra esses grupos estão se sentindo tão confortáveis para defender ideias nazistas abertamente?

Me parece um investimento que não faz muito sentido acreditar que a História ensina. Não. Ela existe e é produzida por pessoas, sociedades, comunidades, a partir das demandas que a sociedade tem. A História não é uma escola. Pode-se produzir história na escola. Há questões fundamentais a serem tratadas como formativas, como se discutir de maneira séria o combate ao racismo. Isso é fundamental. Ter uma política pública de combate ao racismo, de ensino da escravidão, do Holocausto. Talvez essa tenha sido a maior das falências dos últimos tempos. O discurso do Bolsonaro na Hebraica do Rio foi fundacional para ele sair do armário com uma candidatura de extrema direita. Ali, estão a desumanização do negro, a perspectiva do indígena como inimigo, raças boas e ruins. A partir daquele momento, do uso político das vítimas históricas do nazismo, é difícil tratar Bolsonaro como alguém que tem que ser cancelado como nazista, porque ele começa a utilizar símbolos do nazismo mediados com o discurso público. No “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”, vê-se uma gramática com duas orações, divididas por um ponto. A primeira é uma oração nazista, a segunda dialoga com a classe média brasileira. Incorpora-se no discurso da classe média brasileira uma outra oração que é explicitamente nazista. O nome disso é apito de cachorro. E é extremamente sofisticado.

Parece bastante explícito. Em que sentido está a sofisticação?

Quem se liga na segunda parte vai procurar o que é a primeira. Em última instância, passa a entender que o nazismo não é contra Deus, é a favor de Deus. Você começa a incorporar essas pessoas a um discurso nazista mais amplo. A ideia de que “o trabalho liberta” é muito importante na gramática do bolsonarismo. Vai se construindo uma espécie de arquitetura gramatical do nazismo que possibilita às pessoas se encontrarem com ele não numa perspectiva negativa, mas sim de revisitação. De “olha, não é tão ruim assim”. Quanto aos 80 anos de intervalo, há dois pontos importantes. O primeiro é que o pós-guerra deixa de fazer sentido a partir dos anos 1990, com o fim da Guerra Fria, e dos anos 2000, com uma globalização diferente da anterior. A guerra passa a ser não contra perspectivas ideológicas da extrema direita, mas contra grupos que são diferentes. A China, os islâmicos, dependendo pra quem você pergunta. O nazismo deixa de ser o inimigo central. E começa a ser uma referência positiva, porque um agente político passa a utilizar os símbolos do nazismo e produzir a ideia de que o que o nazismo falava é o que você acredita, é o que sua tia, sua vó acreditam, é Deus, trabalho, é a ideia de você se proteger dos inimigos que querem mudar o sexo do seu filho. Ele recoloca o nazismo no discurso público. A etapa seguinte é a de verificação. Quando um fulano fez um discurso fantasiado explicitamente de Goebbels, muitos no Brasil ficaram ofendidos. Não ficaram ofendidos com o discurso da Hebraica, ficaram com o Goebbels. Mas aos poucos isso vai entrando... e, de repente, em Santa Catarina você vê um monte de gente com o braço direito levantado. Aquelas pessoas, individualmente, não têm muita noção do que estão fazendo, mas quem está produzindo aquela gramática, aquela dimensão estética, está produzindo uma coisa que vai ser vendida adiante como uma recuperação dos valores de direita, nacionalistas, hierárquicos e profundamente vinculados a símbolos historicamente conhecidos.

Como se salta disso para um episódio como o do Espírito Santo? Afinal, o neonazismo antecede o bolsonarismo.

Aqui é preciso falar de Olavo de Carvalho. Ele começa a produzir um discurso profundamente conspiracionista, racista e, mais do que tudo, antissemita, lá em 2002. Talvez a coisa mais sofisticada que a extrema direita produziu ao sul do Equador tenha sido a ideia de Olavo de recuperar a noção de conspiracionismo refundando seus alvos. Olavo de Carvalho diz o seguinte: “existe uma conspiração judaica e ela tem de ser atacada. Mas é uma conspiração da esquerda judaica. A direita judaica tem que nos ajudar a atacar a esquerda judaica”. É isso que ele pede num discurso, em 2004, na Hebraica de São Paulo. E, veja, Olavo é o grande cara aqui no início dos anos 2000, colunista de grandes veículos. Ele começa a fazer discurso contra o movimento negro, diz que consciência negra é coisa pra quem não tem consciência humana, daí se coloca contra a ideia de que houve escravidão no Brasil, e se posiciona politicamente numa lógica que articula racismo, antissemitismo e conspiração.

E religião?

Temos que analisar religião com muito cuidado no bolsonarismo, porque Olavo funda a religião da extrema direita. Ela pode ser qualquer uma, catolicismo, protestantismo, até islamismo e judaísmo. Porque ele vincula a ideia de que a religião constitui-se a partir de um culto ao passado, ao mundo que já existiu e precisa ser refundado, baseado em sacerdócio, família e guerreiros. Olavo começa a selecionar inimigos nas religiões, a esquerda da religião, tal qual ele faz com o judaísmo. Então, não é só religião. É uma extrema direita religiosa. Ele vai produzindo textos, documentos, aulas e livros sem ser perturbado. E começa a se aproximar de grupos nazistas que existem no Brasil, mas são periféricos. Existem surtos, para usar os termos médicos, em cidades do ABC Paulista, no Sul a partir de uma referência étnica de recuperação imaginária do vínculo com a Alemanha. Pois bem. A partir de 2011, Bolsonaro começa a ter um discurso público que associa três elementos. O primeiro é o do ódio à diferença. O segundo é o ódio à esquerda. E o terceiro é o negacionismo histórico. E aí, quem vai se aproximar de Bolsonaro? Os neonazistas brasileiros, que usam Bolsonaro como uma referência da extrema direita a ser fundada no Brasil. Em 2012, há uma manifestação no vão central do Masp, com grupos de extrema direita e neonazistas claros apoiando o deputado federal Jair Messias Bolsonaro. Ali há uma articulação tripla: os neonazistas clássicos, Bolsonaro com discurso pouco coerente de ódio e ressentido, e um filósofo da extrema direita que diz que é preciso reagir ao conspiracionismo de que esses grupos seriam vítimas. Isso demora um tempo, mas Bolsonaro sai candidato a presidente da República em 2017.

O que aconteceu nesse intervalo?

Durante seis anos, um setor da direita liberal brasileira começa a incorporar o discurso de Bolsonaro, que já é articulado com o neonazismo abertamente, e um olavismo conspiracionista como algo relevante e possível para derrubar o PT. Agora, a gente vê esse jovem que entrou para matar a gente numa escola no Espírito Santo... Esse foi o sexto caso desde o final do segundo turno. E hoje já teve o sétimo, numa escola no interior de Minas Gerais. O único que produziu mortes foi em Aracruz. Mas a tentativa é de produzir morte. Isso é produto desse caldo de cultura que se produziu a partir dessa combinação de bolsonarismo, neonazismo e olavismo, e que acabou colocando claramente a ideia de que a extrema direita com cores neonazistas é viável em pelo menos 30% da população brasileira. Não dá para entender isso sem entender a adoção desse sujeito como uma alternativa concreta de política.

Nunca dá para entender o neonazismo, o nazismo ou o fascismo histórico sem entender que setores da direita liberal adotam isso como alternativa concreta.

Os bolsonaristas estão todos cientes do que estão apoiando?

O bolsonarismo tem duas camadas. A primeira é a da superfície, que é a da galhofa. Bolsonaro é um sincerão, fala o que pensa, sem ter medo do politicamente correto. É a camada do programa de auditório. A segunda é o subterrâneo. Foi aqui que se produziu o que estou chamando de epidemia do nazismo no Brasil. Bolsonaro queria manter as coisas abaixo da superfície. Mas ele perdeu a eleição. Aquela mediação do discurso entre a superfície e o subterrâneo desapareceu e o subterrâneo vem pra superfície como num jato de ideias muito explícito. Daí, há uma epidemia de nazismo — epidemia no sentido estrito da palavra, descontrolada, com reprodução local e sem que se saiba de onde surgiu. Não tenha dúvida alguma de que, até agora, quem está fazendo esses atentados nas escolas são incels. Mas quem está produzindo a ideia de que um pai que quer operar a vista do filho tem que ser impedido não é um incel. A questão é quando esse cara vai pegar uma arma e dar um tiro numa numa professora de história. É questão de tempo, vai acontecer. Estamos nesse momento muito perigoso. Sem nenhum controle. Eduardo Bolsonaro está no Qatar, Filipe Martins está submerso. [As pesquisadoras] Adriana Dias e Michelle Prado, que fazem o mapeamento dos movimentos e das células neonazistas, estão localizando que quem está pegando em armas e entrando nas escolas são os incels. Mas ambas estão dizendo que em breve não serão só eles. E o Brasil virou uma Disneyândia do nazismo, tem grupos inteiros vindo pra cá. A extrema direita europeia olha para o Brasil e para Bolsonaro como um projeto.

A memória do nazismo na Europa inviabiliza os projetos locais? É por isso que Brasil e Estados Unidos, com Donald Trump confraternizando com supremacistas brancos, ficam tão à vontade?

Novamente, a História não ensina, o que ensina é política de memória. A Alemanha tem uma política de memória que está encarcerando nazistas desde 1953. Está produzindo uma reflexão muito importante sobre o nazismo nas escolas desde 1951. Os nazistas ali não prosperam. E os que prosperam vêm para o Brasil, como no caso do setor mais extremista do partido da Beatrix von Storch, o Alternativa para a Alemanha. Mas há outros países na Europa onde perspectivas de extrema direita e neofascistas estão acontecendo de maneira bem explícita, como na Hungria, Itália e Suécia. A presença de vítimas do nazismo no território não produz uma vacina contra o neonazismo. Mas há características dentro de Estados Unidos e Brasil, características históricas, que justificam a ascensão. Tanto Brasil quanto EUA têm memórias de passado recente, ao contrário dos países da Europa que são capazes de produzir uma espécie de vínculo de continuidade com um passado imemorial. Isso tem a ver com a presença da percepção de destino manifesto. A ideia de que quem criou Brasil e EUA foram os brancos. E os negros e os outros que vieram depois estragaram o país. Onde houve a expansão dos assassinos de indígenas no século XVI e XVII, é justamente onde Bolsonaro continua ganhando as eleições no segundo turno. Isso não é casual. A ideia de que a expansão econômica brasileira podia utilizar-se de mão de obra escrava, mesmo quando isso já era ilegal no próprio país, deixa marcas na história do país. O discurso que acabou produzindo o bolsonarismo, do aeroporto que virou rodoviária, da empregada doméstica ganhando um direito de civil, indo pra Disney, a ideia de que pobre não pode ir pra universidade... Em 2018, no Roda Viva, Bolsonaro disse em cadeia nacional que não houve escravidão no Brasil. Esse discurso do bolsonarismo acabou produzindo a possibilidade de que ele crescesse no país que tem uma classe média branca ressentida das políticas públicas de inclusão social . Isso também nos Estados Unidos.

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