Collor surtou por depoimento de um motorista; Bolsonaro, de um porteiro


Bolsonaro surtou. A reação foi inesperada mesmo para alguém que vive da excitação de seus seguidores no intuito de garantir uma constante guerra política. O depoimento sincero de um motorista fez um outro presidente surtar e se tornou peça fundamental 
para o seu declínio

Bolsonaro em live do Facebook (reprodução)


Bolsonaro surtou. Não há definição melhor para descrever o comportamento do presidente da República, durante uma live realizada na Arábia Saudita, após ver seu nome mencionado na investigação sobre a execução da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes.

De acordo com reportagem do Jornal Nacional, desta terça (29), a portaria do condomínio do presidente registrou a entrada de um dos acusados de envolvimento no crime, que teria afirmado que visitaria a casa de Bolsonaro, mas acabou indo para a residência de outro acusado – vizinho do presidente. Isso ocorreu no dia das mortes, 14 de março de 2018.

Na live, o tom foi subindo à medida em que seu discurso avançava – ou, melhor, a cada vez que ele colocava os óculos e lia a orientação de alguém que estava por atrás da câmera do celular. Ou seja, pode ter tido indignação, mas também teve destempero calculado. Xingou e ameaçou a TV Globo e acusou o governador do Rio, Wilson Witzel de ter vazado o depoimento – o que, se confirmado, é realmente grave.

Chegou ao ponto de dizer que “não tinha motivo nenhum para matar quem quer que seja no Rio de Janeiro”. Vale, aliás, perguntar ao presidente quais seriam os motivos que justificam matar alguém.

A reação foi inesperada mesmo para alguém que vive da excitação de seus seguidores no intuito de garantir uma constante guerra política; mesmo para quem usa sistematicamente cortinas de fumaça chamando atenção para o espetáculo e desviando do foco dos problemas; mesmo para um Bolsonaro.

Considerando que ele estava na Câmara dos Deputados, em Brasília, no dia do ocorrido, poderia usar de ironia, sarcasmo e cinismo para rebater a conexão, como já fez em outros momentos? Desta vez, não. Agora, trata-se do principal caso de homicídio político com investigação em curso no país. No qual o “Escritório do Crime”, milícia acusada de executar Marielle e Anderson, a mando, tem entre seus líderes um amigo de Fabrício Queiroz (BFF de Jair) – amigo cuja mãe e esposa “trabalhavam” para Flávio Bolsonaro. Flávio, que foi o mais bem votado no território dessa milícia, Rio das Pedras.

A irritação do presidente serve para engajar ainda mais seus fiéis seguidores, mas é péssimo para a imagem pública de quem quer se mostrar acima de qualquer suspeita. Seria de interesse dele resolver a questão o quanto antes, mas o surto indica algo além. Comprovando-se verdadeiro o depoimento e os registros escritos, o capitão quer proteger alguém de sua família? Ou expor alguém? Afinal, ele passa tempo demais dizendo que querem pegar seus filhos, apesar da reportagem não citar nenhum deles.

O porteiro atesta que o ex-policial militar Élcio Queiroz, acusado de participar da execução de Marielle e Anderson, disse na portaria que iria à casa de Bolsonaro, no dia do crime. Segundo dois depoimentos dele, “seu Jair” liberou a entrada. Há registros do carro de Élcio e do destino informado: casa 58, uma das propriedades do presidente no condomínio. Mas o carro foi para a casa de Ronnie Lessa, apontado como o autor dos disparos que mataram os dois (sim, eles são vizinhos e o filho de Jair, o estudante de Direito Jair Renan, namorou a filha de Lessa). O porteiro ligou para a casa 58 e alguém confirmou que sabia para onde o carro estava indo, segundo a reportagem veiculada pela TV Globo.

Bolsonaro, em sua live, isentou o porteiro de responsabilidade, dizendo que ele pode ter assinado o depoimento sem entender direito o que estava fazendo. Mas há quem veja coação de testemunha.

A grande maioria dos porteiros são trabalhadores incansáveis e discretos. Sabem quem entra, quem vai, quem fica, quem sai – e por quanto tempo.

Da mesma forma, a maioria dos motoristas são trabalhadores incansáveis e discretos. Sabem quem vai, para onde, quem vem, de onde, quem fica – e por quanto tempo. Eriberto França trabalhava como motorista e assessor de Ana Acioli, secretária particular de Fernando Collor. Mexia com dinheiro em nome da família Collor. Seu depoimento sincero ajudou a derrubar o então presidente.

Queiroz também era incansável, trabalhando como motorista e assessor de Flávio, mexendo com o dinheiro em nome da família Bolsonaro. Mas não se pode dizer que era discreto.

Gabou-se, em áudios recentemente vazados, que se estivesse numa situação mais favorável poderia botar ordem no PSL. Contou que discutia com Jair a exoneração de funcionários. Afirmou que está se sentindo só e abandonado. Ele, que é a resposta viva à indagação do presidente durante a live (“o que eu e Flávio temos a ver com laranjal?”), afirmou que o Ministério Público tem “uma pica do tamanho de um cometa para enterrar na gente”. Queiroz é uma conexão dos Bolsonaros com o “Escritório do Crime” e, consequentemente, os executores de Marielle e Anderson.

Imagine o que o depoimento sincero de uma testemunha que não pode ser facilmente coagida seria capaz de fazer?

*Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo

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