O tempo das vacas magras

Por Dário Gomes*
É com imensa alegria que pego este papel e lápis para escrever estas mal traçadas linhas, com o único objetivo de enviar-lhe notícias minhas para então poder conhecer ou saber de vossas notícias através da resposta que me enviares.

E assim se escreviam cartas aos parentes distantes, o início já era decorado e o corpo da mensagem, muito claro e objetivo, não tinham sequer sombras de quaisquer que seja acusação contra o regime que, desde março de 1964, havia sido implantado no Brasil.

Nossa família composta de cinco pessoas, havíamos ido morar no interior do estado de São Paulo, e por dez anos por lá vivemos. Todos trabalhavam, meu pai era tecelão, minha mãe vendia, porta a porta, produtos da Avon e Christian Gray, minha irmã trabalhava em uma fábrica clandestina de bolas de ar, eu e meu irmão éramos jornaleiros. O que ganhávamos, mal dava para o sustento familiar. O Brasil estava entrando numa das fases mais difíceis de sua história.

Na década de 70, auge do Regime Militar, aprendemos a marchar no dia 31 de março em comemoração ao golpe, e no dia 7 de setembro em comemoração a independência do Brasil; Cantávamos todos os hinos pátrios: Hino da bandeira, Hino da República, Hino Nacional, Hino da independência e ainda uma musiquinha inventada, na verdade uma paródia encima da música natalina “jingle bell” para não esquecermos do domínio militar, que dizia:

“31, 31, 31 de março, é o dia, é o dia da revolução

Quando as forças armadas desse meu país, acabaram, acabaram com a corrupção

Salve este dia, salve este dia, nós vamos cantar com alegria

Salve este dia, salve este dia, nós vamos cantar com alegria”

Éramos obrigados a cantar o hino nacional todos os dias e participávamos do hasteamento das bandeiras, usávamos o uniforme escolar, o qual era composto assim: Camisa branca com três bolsos e no bolso superior o símbolo da escola, short azul marinho, meia ¾ branca, e sapato Vulcabrás preto, a diferença para as meninas era que usavam saias ao invés do short.

Não tínhamos transporte escolar, nossa merenda era sopa de miúdos de frango ou leite de soja que nem me lembro o que o acompanhava, não existia nenhum plano de governo para ajuda a necessitados.

Sempre se falou de classes sociais, mas a gente naquela época, só conhecia duas: a rica e a pobre.

A classe pobre não tinha carro, casa, telefone, não fazia faculdade, não estudava fora, depois que terminávamos o 2º grau acabou, dali prá frente só a classe rica prosseguia. Não tínhamos bolsa escola, não tínhamos Fies, não tínhamos Enem, não tínhamos Prevupe e nem tínhamos nada. E nem tampouco o direito de reclamar. As professoras usavam uma régua de 50 centímetros para bater na cabeça de quem desobedecia (nem todas usavam) e não tínhamos a quem recorrer.

A classe rica, por sua vez, era composta de funcionários nomeados para os bancos do governo, para as firmas do governo, tudo feito por apadrinhamento, não existia concurso público e se existisse ninguém sabia, na época existiam os coronéis , os majores que nunca serviram a polícia, nem exército, eram nomeados por serem ricos, e tinham poderes para nomearem quem eles quisessem: filhos, noras, genros e puxa-sacos em geral. Depois que alguém era nomeado como funcionário do governo, nada o tirava de lá, eram perpétuos no cargo, ganhavam muito dinheiro à custa do governo: Banco do Brasil, Petrobrás, Correios e todas as demais estatais.

Hoje eu olho as coisas que acontecem ao meu redor, as mudanças políticas, os planos que o governo mantém, as casas financiadas aos de baixa renda, a ajuda concedida aos menos favorecidos, o valor que o salário mínimo tem e considero tudo isso e vejo que muita coisa mudou e mudou para melhor.

Eu aprendi a valorizar tudo isso porque eu aprendi a viver no tempo da ditadura militar, eu aprendi a viver no tempo das vacas magras. 

Um abraço e até a próxima.

*Dário Gomes de Araujo é Evangelista da Igreja Assembleia de Deus e atualmente é gestor na cidade de São José do Egito

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