Bolsonaro prepara celebrações para os 55 anos do golpe de 64


Bolsonaro tenta reescrever o passado e ordena o retorno da celebração em batalhões e quartéis da deposição de um presidente e da implementação de um regime que matou, torturou, estuprou, cassou, roubou (e muito), perseguiu e sumiu com pessoas, negando a democracia ao país por 21 anos

Jair Bolsonaro (Imagem: Marcos Corrêa | ABr)

Por Leonardo Sakamoto*

Após reunião com seus principais assessores, Jair Bolsonaro teria afirmado, nesta segunda (25), que era hora de pacificar a relação entre o Executivo e o Legislativo em nome da Reforma da Previdência. Logo depois, voltou à carga contra Rodrigo Maia, publicando, em sua conta no Twitter, a opinião de um jornalista que criticou o presidente da Câmara dos Deputados e defendeu seu filho Carlos Bolsonaro, vereador no Rio e responsável pelas redes sociais do pai – não necessariamente nessa ordem.

O próprio Carlos, sem citá-lo diretamente, também criticou Maia, que havia dito que Bolsonaro deveria gastar mais tempo com a articulação da Reforma da Previdência e menos com o Twitter. “As pessoas que querem Bolsonaro longe das redes sociais sabem que é isso que o conecta com o povo, já que não tem mídia a seu favor. Foi isso que garantiu sua eleição, inclusive. Em outras palavras, o querem fraco e sem apoio popular pois assim conseguiriam chantageá-lo.”

A despeito da possibilidade de Carlos ter publicado ele mesmo os dois posts, pois tem acesso à conta do pai, ambos claramente tiveram a anuência do presidente da República, mostrando que a reunião com os assessores não foi tão bem absorvida.

E, em meio ao ninguém é de ninguém no salão, até o líder do partido de Bolsonaro na Câmara dos Deputados, Delegado Waldir (PSL-GO), reclamou da falta de empenho dele pela reforma, da baixa qualidade da articulação do governo até aqui e dos ataques nas redes sociais puxadas por Carlos e pela nuvem de gafanhotos digitais.

Bolsonaro deveria parar de agir como se comandasse o “Ministério da Verdade” – apresentado no romance “1984”, de George Orwell, com a função de ressignificar os registros históricos e qualquer notícia que fosse contrária ao próprio governo – e começar a atuar como presidente da República. Para tanto, sua máquina de guerra nas redes sociais e nos aplicativos de mensagens, fundamental para sua eleição, continua ligada e é usada para atacar violentamente a imprensa, o Congresso Nacional, o Supremo Tribunal Federal e qualquer um que critique ao invés de dizer amém.

Não admira, portanto, que o porta-voz da Presidência da República tenha comunicado, também nesta segunda, que Bolsonaro “determinou ao Ministério da Defesa que faça as comemorações devidas com relação ao 31 de março”, quando o golpe de 1964 completa 55 anos. Até porque, segundo o general Rêgo Barros, “o presidente não considera o 31 de março de 1964 golpe militar”.

Note que ele tem a nobre companhia do presidente do STF, ministro Dias Toffoli – que, em outubro do ano passado, disse que prefere chamar a data de “movimento de 1964”.

Bolsonaro “considera que a sociedade reunida e percebendo o perigo que o país estava vivenciando naquele momento, juntou-se civis e militares e nós conseguimos recuperar e recolocar o nosso país num rumo que salvo melhor juízo, se tudo isso não tivesse ocorrido, hoje nós estaríamos tendo algum tipo de governo aqui que não seria bom para ninguém”, afirmou. Essa não é uma visão majoritária no país, mas agora é defendida pelo Palácio do Planalto.

Como escreveu o criador do Big Brother (o do livro “1984”, não o reality): “quem controla o passado, controla o futuro; quem controla o presente, controla o passado”.

Reescrever o passado pela tinta do presente inclui ordenar o retorno da celebração em batalhões e quartéis da deposição de um presidente e da implementação de um regime que matou, torturou, estuprou, cassou, roubou (e muito), perseguiu e sumiu com pessoas, negando a democracia ao país por 21 anos. Os generais da reserva, da equipe de assessores próximos supracitada, teriam recomendado que essas comemorações fossem discretas. Mas quem manda é o capitão. E ele mesmo dará o tom disso, no Twitter, no próximo domingo.

Frei Tito, encontrado enforcado no dia 10 de agosto de 1974, durante seu exílio na França, como consequência da tortura que sofreu pelas mãos dos agentes da ditadura militar no Brasil, deveria estar nesses festejos, mas infelizmente não será convidado. Afinal, o testemunho de sua tortura à Justiça Militar, completa 50 anos: “Sentaram-me na ‘cadeira de dragão’ [com chapas metálicas e fios], descarregaram choques nas mãos e na orelha esquerda. A cada descarga, eu estremecia todo, como se o organismo fosse decompor. Da sessão de choques, passaram-me ao pau de arara. Mais choques, pauladas no peito e nas pernas cada vez que elas se curvavam para aliviar a dor. Uma hora depois, com o corpo todo sangrando e todo ferido, desmaiei” .

Garantir que o “golpe de 1964” fosse assim chamado demandou sangue, suor e a vida de muita gente. Indo contra o poder econômico, o poder político e o poder midiático que, em determinado momento, apoiaram o regime. Mas foi um processo vitorioso. Prova disso é que a própria Globo, que deu anuência à tomada de poder pelos militares, fez seu mea culpa com um famoso editorial intitulado “Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro”. Nem revolução, nem movimento. Golpe.

O “Ministério da Verdade”, de Bolsonaro, inclui castrar a liberdade de ensino conquistada desde a redemocratização, com uma intervenções no significado e no sentido da educação pública. Ordenar a leitura de slogan de campanha eleitoral nas escolas, demandando que crianças fossem gravadas enquanto cantassem o hino nacional e seus vídeos enviados a Brasília – tudo sem autorização dos pais – foi a parte pastelão de um processo maior, em curso. Inclui também apontar muitas das liberdades conquistadas desde a Constituição de 1988 e dizer que a sociedade está corrompida e degradada por conta delas, precisando de refundação. E, claro, que “os direitos trabalhistas” são privilégios que produzem crise econômica.

É certo que Bolsonaro conseguiria nos levar de volta a 1964 – ou, pior, 1968. Mas ele consegue construir um 2019 que garanta dignidade à população no futuro? Daí, há três questões para refletir.

Primeira: uma pessoa cunhada para a guerra é capaz de negociar pacificamente e resolver conflitos, como tratei no post deste domingo? Isso não tem a ver com a formação militar do capitão reformado, uma vez que os generais da reserva que fazem parte da sua equipe demonstram ser muito, mas muito mais moderados e afeitos ao diálogo que ele. Um político eleito com uma narrativa antissistêmica, contra tudo o que está aí, conseguiria articular com o políticos para aprovar projetos e reformas de forma a não comprometer essa imagem? A questão é que, tendo passado três décadas defumando no conflito, a ponto de dizer que uma deputada “não merecia ser estuprada”, seria ele capaz de agir de forma republicana?

Segunda: ele propositadamente está deixando sua equipe entrar em combustão ou não faz ideia de como equilibrar os diferentes grupos que lhe dão suporte? O escritor e astrólogo Olavo de Carvalho, guru intelectual de Bolsonaro e família, ataca com insultos os ministros de origem militar e, principalmente, o vice, Hamilton Mourão, como parte da disputa interna de poder. O presidente, diante disso, permanece em silêncio e até o celebra em jantar – elevando as suspeitas de que muito do que o escritor diz representa aquilo que o presidente e a ala ideológica de sua equipe creem, mas não podem falar diretamente.

(É preciso reconhecer o sangue frio do pessoal que usava farda. Mesmo sob fogo-amigo, eles têm servido como aquelas rodinhas de bicicleta, usadas por quem não aprendeu a andar sozinho. A bicicleta, no caso, é a Presidência. A resposta mais dura, até agora, veio do ministro-chefe da Secretaria de Governo, Carlos Alberto Santos Cruz, que chamou Olavo de Carvalho de “desequilibrado”, em matéria de Thais Bilenky, na Folha de S.Paulo. Um gentleman em comparação à escatologia do guru da Virgínia.

Terceira: ele e seus aliados ideológicos realmente acreditam que a população acredita que eles acreditam no que estão defendendo? Porque achar que o governo contará com “pressão popular” para aprovar a Reforma da Previdência, do jeito que foi enviada ao Congresso Nacional, é mais hilário do que a piada do papagaio que foi crucificado por passar muito trote. Na hora em que a população mais pobre entender a tungada que vai tomar com mudanças, como as que postergam o acesso ao salário mínimo do benefício para idosos em situação de miséria, dificultam a aposentadoria de trabalhadores rurais e endurecem pensões para viúvas e órfãos pobres, vai ter protesto nas ruas – mas contra o governo.

Neste momento, a maior chance de aprovação da sua reforma passaria por uma interlocução com o Congresso Nacional, convencendo, cedendo, contra-argumentando (com fatos, não com fakes), negociando, articulando, dividindo poder, governando junto. O que, como já defendi aqui várias vezes, é bem diferente do velho toma-la-da-cá e do comércio de cargos e emendas. Ao invés disso, segue com a antipolítica como norte, deixando o filho e as redes livres para abater adversários como milícias digitais. Não confundir com as da Zona Oeste do Rio. Essas são homenageadas por outro filho do presidente, que chegou a contratar familiares de chefes de milícias para trabalharem em seu gabinete.

Em outubro do ano passado, em entrevista à Rádio Jornal, de Barretos, Bolsonaro afirmou que o objetivo de seu governo seria fazer “o Brasil semelhante àquele que tínhamos há 40, 50 anos atrás”. Taí o problema. O foco é para trás, não para frente.

O presidente está no volante, mas parece que só quer engatar a ré.

*Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo

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