CENA COTIDIANA
Por Pablo Villaça*

Mal tinham corrido quatro metros quando foram abordados por um camburão da PM e viram armas saindo da janela do veículo e apontadas para suas cabeças.
Eles haviam se esquecido de uma regra básica de nossa sociedade: homens negros não podem correr.
Ao menos, não em público.
Quatro policiais desceram e, com as armas ainda apontadas para os dois amigos, puxaram seus braços com força - braços que os dois sujeitos já haviam levado automaticamente para trás da cabeça.
O motorista do ônibus parou atrás do camburão enquanto os aspirantes a passageiros eram revistados com brutalidade.
Do meu carro, assisti atônito à cena. Inicialmente assustado - não em função dos "ameaçadores" corredores, mas ao ver armas apontadas em público -, logo vi o susto ser substituído por imensa revolta. Era patente o racismo envolvido: fosse eu o homem correndo pela rua, os PMs dificilmente me abordariam daquela maneira.
No entanto, o que mais me doeu não foi sequer o ato da polícia, mas a reação dos dois amigos: ao verem armas apontadas para seus rostos, eles simplesmente fizeram um aceno negativo resignado com a cabeça, como se dissessem "Não é possível; será sempre assim?", e assumiram a postura para a revista sem que ninguém ordenasse.
Revistados, entregaram os documentos e apontaram para o ônibus, explicando por que haviam corrido. Os policiais se entreolharam, fizeram um comentário inaudível e atiraram os documentos de volta quase com desprezo.
Do ônibus, o motorista acenou para os dois amigos num gesto de "venham!" e abriu a porta. Havia esperado por eles ao perceber o que ocorrera.
Também era negro.
Segui com o carro e passei ao lado da viatura. Havia esquecido de prender o cinto de segurança, mas ninguém me incomodou.
*Pablo Villaça é Crítico de cinema desde 1994, é diretor-fundador do portal Cinema em Cena e autor do livro "O Cinema Além das Montanhas". Diretor e roteirista dos curtas "A_ética" e "Morte Cega".
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