São Paulo condenou à morte o pintor que trocou o carro pela bicicleta


Gilmar Mata pedalava em ciclovia pouco antes de ser atropelado. 
Foto: Lusimar Rodrigues/Arquivo Pessoal

São Paulo não faz sentido.

Não por um motorista que atropelou um ciclista, carregando-o no capô do carro por alguns quilômetros sem que parasse para prestar socorro, até que ele caísse e morresse, na região de divisa entre Osasco e a capital paulista.

Não pelo pintor Gilmar Barbosa da Mata ter sido morto ao ter preferido usar a bicicleta pela primeira vez, deixando o carro em casa para ir e voltar ao trabalho, em uma cidade que não aguenta mais enxames de veículos, sua loucura e poluição.

Não pelo fato de que precisou que a própria filha do motorista denunciasse o pai para que o foragido se entregasse à polícia na manhã deste sábado.

Pois li e reli as notícias produzidas sobre o caso e percebi, de forma melancólica, que essa sequência de fatos bizarros, sem razão nenhuma de ser, faz parte do cotidiano de quem é morador da maior região metropolitana do país.

De uma forma ou de outra, todos nós ouvimos essa história antes, com pequenas variações e tenho certeza que meus colegas a relataram outras tantas, com outros nomes. Até o ponto de torna-las parte de nossa vida.

Às vezes, é uma vida inteira que se vai às margens de um rio malcheiroso. Outras vezes, um braço que é jogado fora.

Em março de 2013, um jovem morador de um bairro pobre do extremo Leste da capital, que costumava ir ao trabalho de bicicleta, foi atropelado na avenida Paulista por outro jovem que saía de uma balada em um bairro rico, dirigindo seu carro após ter ingerido álcool na madrugada. Sob a alegação de que houve fuga sem que fosse prestado socorro por medo de linchamento, o carro carregou um braço arrancado do ciclista e, quilômetros depois, arremessou-o em um córrego fétido ao invés de devolver para um reimplante. A Justiça, em 2016, converteu a punição em serviços comunitários e multa.

Ou, às vezes, é uma vida inteira e um braço que vão juntos. Em julho do ano passado, um ciclista morreu após ser atropelado e ter um braço amputado em Diadema. O motorista, como os outros dos casos acima, fugiu sem olhar para trás.

Podemos tentar fazer diferente?

Sim. Em uma realidade paralela, Gilmar Barbosa da Mata não teria sido atropelado, muito menos carregado por quilômetros enquanto lutava por sua vida, pedindo ao motorista que parasse. O motorista, ao avistá-lo e sua bicicleta, teria lhe dado prioridade, perdendo apenas alguns segundos. Dessa forma, Gilmar voltaria para casa, podendo comemorar seu aniversário de 46 anos, que seria no dia seguinte, junto com sua esposa e dois filhos.

A vida na realidade paralela não é muito diferente desta aqui. Mas, lá, a cidadania pertence às pessoas e não aos automóveis. E a vida de alguém vale mais do que o tempo perdido no trânsito.

Ao todo, 21 ciclistas foram mortos no município de São Paulo entre janeiro de junho deste ano - uma alta de 75% em comparação ao mesmo período do ano passado, segundo o governo do Estado.

Essas histórias não devem fazer sentido para milhões de outras pessoas, moradoras de milhares de outros locais do mundo. Não, não estou dizendo que a região metropolitana de São Paulo é a mais violenta ou que muitos de seus habitantes são loucos.

Mas em São Paulo, apesar da indignação, o surreal e o insano fazem todo o sentido. Nós os banalizamos.

Prova disso são as milhares de almas que culpam os ciclistas por suas próprias mortes, mesmo quando a responsabilidade é claramente da imprudência e imperícia dos condutores de ônibus e automóveis. Tem o mesmo DNA do machismo que culpa mulheres por serem vítimas de nossa violência de homens.

Esse lugar, que não faz sentido, não nos é dado como certo. Pelo contrário, ajudamos a renová-lo e contrui-lo, por nossa ação e nossa ignorância, diariamente. E, por enquanto, a maior parte de nós sente-se confortável diante da insanidade por achar que isso não lhe diz respeito.

São Paulo faz muito sentido. Infelizmente.

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